A sigla RFFSA, que por décadas foi sinônimo de trem e ferrovia no Brasil, hoje significa apenas inoperância e desperdício. Há 10 anos, desde que a malha ferroviária foi privatizada, a Rede Ferroviária Federal S.A. não tem função operacional. Mas também não foi extinta.
As tentativas de liquidação esbarraram na ação do Ministério Público, que reclama um inventário detalhado dos bens da estatal – o segundo maior patrimônio imobiliário da União. Há na Justiça mais de 30 mil ações trabalhistas contra a empresa e as dívidas ultrapassam a casa de R$ 5,5 bilhões.
O resultado das pendengas é que a Rede permanece ativa, administrando o nada com 474 funcionários. A estrutura consome milhões de reais por ano. Em 2005, foram R$ 50 milhões, ou R$ 4,2 milhões por mês, somente em gastos correntes.
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Desde 2002, o procurador da República Luís Cláudio Pereira Leivas tenta, sem sucesso, listar o patrimônio e reunir as escrituras dos imóveis da ex-operadora. No caso da Rede, o verbo liquidar não está sendo usado no sentido comercial, mas sim no literal, diz. Em relatório que consta dos inúmeros volumes do processo sobre a RFFSA, ele escreve: Confesso-me desencantado. Enviei 486 expedientes à RFFSA, com poucos resultados concretos.
Em entrevista, Leivas repete o discurso. Acredito que a Rede tem mais a receber do que a pagar. Há bens leiloados que não foram pagos, outros vendidos a preço de banana. Além disso, o patrimônio supera, em muito, o passivo da empresa.
O liquidante atual da Rede, Moacir Lima, não dá entrevistas, apesar das insistências. Concorda apenas em responder às perguntas por e-mail. Segundo os dados que enviou, os gastos anuais correntes são explicados pelas despesas com salários e encargos (R$ 33 milhões), serviços de terceiros e materiais (R$ 6 milhões), administrativo do passivo judicial (R$ 5 milhões) e despesas administrativas (R$ 6 milhões).
Lima informa que ainda não há nova data para a liquidação, já decidida pelo governo, e diz que o processo ainda não chegou a termo em razão da própria dimensão dos trabalhos. Enquanto o destino da Rede não é selado, o patrimônio que resta é saqueado e depredado.
Eu testemunhei essa deterioração. A perda patrimonial que a Rede vem sofrendo desde que foi publicado o decreto que a colocou em liquidação, em dezembro de 1999, afirma Clarice Soraggi, presidente da Associação dos Engenheiros Ferroviários. Ela ingressou na RFFSA em 1976, ano em que um grave descarrilamento deixou centenas de vítimas. O trem, que trafegava num subúrbio do Rio, invadiu a quadra da Império Serrano, onde se realizava um ensaio carnavalesco.
A direção da Rede foi destituída temporariamente, o então presidente Geisel nomeou um interventor e instalou um telefone vermelho na Central do Brasil com ligação direta para a Presidência da República. Foi uma época de mudança total no sistema ferroviário, lembra.
Vinte anos depois, os cerca de 30 mil quilômetros de malha ferroviária entraram no programa de privatização. O atual presidente da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT, órgão regulador criado seis anos após o leilão), José Alexandre Nogueira de Resende, era presidente da RFFSA e permaneceu no cargo até 1999. Em 1998, foram leiloados mais de 3 mil imóveis, lembra. Houve uma questão de ordem política: a liquidação da Rede, que perdeu seu objeto social. A infra-estrutura, um bem da União, ficou arrendada.
Ele reconhece que o patrimônio da RFFSA vale mais do que o negócio ferroviário em si. Uma operação de securitização transferiu diretamente ao Tesouro o valor do arrendamento das ferrovias da antiga Rede. No exercício de 2005, segundo dados fornecidos pelo liquidante, a receita de arrendamento alcançou R$ 43,197 milhões.
Os três anos que antecederam a privatização foram de escassez absoluta de investimentos na malha ferroviária, como comprova um levantamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
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