Mônica Manir
O bêbado caiu. Não estava preparado para aqueles 215 metros de comprimento, 26 metros de altura, 40 metros de vão. Vertiginou-se. Levantou assim assim, coxa ante coxa, e sentou no banco de ferro. Coisa chique aquilo ali. Concluída em 1938 no estilo Luís XVI, a Estação Júlio Prestes mantém a imponência da fase áurea do café. Bem verdade que caiu em decadência, feito bêbada, a partir dos anos 50, quando os ônibus roubaram seu lugar na malha de transporte paulista. Mas na década de 90 Mário Covas botou pra quebrar e mandou restaurar o monumento. O imenso hall da estação virou a Sala São Paulo, reduto de concertos de música clássica. O bêbado não sabe que o erudito está à vista, logo atrás da parede de vidro. Pouca gente da plataforma sabe. Querem é saber do trem.
Juntam dois seguranças em volta do ébrio, que se percebe figura non grata. Se ele cair na linha, babau!, diz um funcionário. Pessoas embriagadas ou intoxicadas por álcool ou outras substâncias tóxicas fazem parte da lista de proibitivos da CPTM, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que cuida de 84 estações operacionais na região metropolitana de São Paulo. As estações estão distribuídas em seis linhas, todas com rótulo de pedras preciosas: Rubi, Diamante, Esmeralda, Turquesa, Coral, Safira. A Júlio Prestes, preciosíssima, encabeça a Diamante. O bêbado não sabe disso. Ninguém na plataforma sabe. Querem é saber da composição sentido Itapevi, que estaciona sem buzinaço. São 6 da manhã. O bêbado ficou na saudade.
A vantagem de sair do terminal é poder viajar sentado, talvez na janelinha. A desvantagem é que, mesmo proibitivamente, as janelinhas estão rabiscadas com traços helicoidais, circulares, elípticos ou na linguagem indefectível das pichações. Dá para identificar um Radicais, um Autopsia e um Libertação Animal. Pueta TM? Shoo? Herb Deg? Nos bancos em vermelho vigoram declarações de amor de Jefferson para Talene, de Ninho para Kleiton. Nos bancos azuis, idem. Deviam ser bancos de respeito. Estão destinados a pessoas com deficiência, crianças de colo, gestantes, idosos e obesos com I.M.C. maior que 40. Uma gordinha de considerável volume, aliás, reclama com a amiga do pífio bufê degustado em uma Casa Grande no dia anterior. Rico não come, experimenta.
O vandalismo é freqüente nas composições. Entre janeiro e junho deste ano, a CPTM registrou 1.392 ataques contra portas, janelas, lacres de extintores de incêndio, luminárias e bancos. Os gastos com os reparos chegaram a R$ 1.730.400 e uns quebrados. Daí o anúncio nesta semana de que, a partir de fevereiro de 2009, será implantado um sistema de vigilância com câmeras nos trens.
Se o vandalismo não atingir as ditas cujas, elas devem flagrar os ambulantes que se esgueiram entre um vagão e outro com mochilas de zíper quebrado. Comercializar e/ou distribuir mercadorias ou impressos está previsto na lista de proibições.
– Bala de gengibre, descongestiona os brônquio, 3 reais nas drogarias e farmácias, 1 real na minha mão.
– Mapa de São Paulo, mapa do Brasil, com praça de pedágio nos dois sentido, 1 real.
– Isqueiro e lanterna de 1 real. O isqueiro era 2, agora é 1.
– Três barra de cereal por 1 real.
– O mais novo e completo livro da Ana Maria Braga, comida baiana, comida gaúcha, 6 reais na banca (o livro, de bolos, é de 2004). 1 real para acabar.
É o shopping dos pobres, classifica Edson Ferreira, atendente de uma loja de aparelhos eletrônicos em Itapevi. Edson tira os fones de ouvido para conversar. Ele engrossa a estatística amadora, porém evidente, dos zilhões de usuários – 394 mil diários na Linha Diamante, 1,8 milhão por dia no total – que sintonizam seus celulares e MP3 em músicas para suportar o cansaço dantesco cá dentro e a paisagem de guerra lá fora. A Diamante contempla o maior número de estações: 25. Segue na direção oeste da periferia, passando por Osasco, Carapicuíba, Barueri, Jandira e Itapevi. Quem quiser se estender até a Parada Amador Bueno, em Itapevi, dá, desde que em vagões pequenos, grafitados até a alma. De bitola menor, sacolejam lentamente como uma gangorra. Até Amador Bueno, a previsão de tempo é de 1h30.
Seu Eljásio Teixeira, de 81 anos, saiu de Amador com uma mochila e um caça-palavras. Atual vendedor de borracha de panela, gilete e isqueiro, vulgo camelô, trabalhou por uma dúzia de anos na antiga Fepasa. Gosta de trem porque é bem atendido, tudo pessoa qualificada. Tem que pegar pessoas com relações humanas, quem não gosta de gente que vá trabalhar com enxada, que é objeto e não fala. Eljásio jogou na loto esta semana. Almeja ir para Alphaville, condomínio encravado em Barueri que é sonho de consumo da vizinhança. Quero ficar no meio dos ricos, onde o mais pobre seja eu. Conhece as pessoas pela pele, sabe quem está bem de situação e quem é marreteiro, mas se diz analfabeto de pai e mãe. Estranho… Catou muito bem as palavras na minha frente… Sou analfabeto, estou te dizendo, menina. Desceu na Estação Antônio João, não sem antes anunciar o epocalipse: Precisa de mais trens; um dia vai dar um relâmpago e tudo isso aqui vai derreter.
Discurso mais inflamado corre no segundo vagão, o dos evangélicos. A pregação do dia é feita por um irmão e duas irmãs, que assim se chamam, anonimamente. O irmão pertence à Comunidade Pentecostal Adonai e anuncia o fim dos tempos na linguagem da aleluia: Os alcoólatras, aleluia, mentirosos, aleluia, falsos mentirosos, aleluia, vão cair num lago de fogo ardente, aleluia. Ele conta ainda que, antigamente, todo o mundo era bagunçado. O homem tinha 4 esposas e 20 concubinas. Aquele povo do Egito pereceu. Deus mandou umas pragas. Nosso Deus era fulminante. Não permitia o erro. Mas Jesus veio e você está vivo graças a Jesus Cristo. Aleluia.
As irmãs entoam cantos de louvor em altos decibéis, e quem está à volta parece conformado com o seu destino. Ou mais ou menos. No ano passado, 137 pessoas registraram incômodo babilônico com a pregação, que, aliás, é proibida pela CPTM. Enquanto isso, o grupo de 2 mil evangélicos de diferentes denominações persevera para manter uma atividade que já dura 28 anos. Inclusive convidam a assembléia itinerante para o IV Congresso dos Pregadores de Trem, neste fim de semana.
No extremo oposto, ou seja, no 12º vagão, o último, habita a perdição. É o que dizem as boas e as más línguas. Ali consumidores de drogas alimentariam a nóia. Isso quando podem, porque seguranças de uma empresa terceirizada, vestidos de azul, invariavelmente circulam na área com os seus cassetetes. Na quarta-feira à noite, o trem apitou, mas não saiu de Jandira. Põe a mão na cabeça, põe a mão na cabeça, gritava o segurança. Um cego no vagão da frente enrijeceu. Tem gente aí?, perguntou. São aqueles marrom?, perguntou de novo. Um moço respondeu que era azul. Marrons são os guardas que ardam armados. O trem apitou de novo e partiu. Sabe-se lá o que aconteceu porque ninguém foi à janela. O cego esperou a próxima estação, Jardim Silveira, e se encorujou à porta. Tirou um creme da bolsa e o espalhou no rosto e no pescoço. A tampa caiu. Ô, inferno! Aflitivamente, com a bengala encostada à porta, ele rastejou no chão atrás do envoltório. Ei-la. A porta abriu. Ele desapareceu na escuridão, amaldiçoando o breu.
Lembrou, em certa medida, o Apólogo Brasileiro sem Véu de Alegoria, conto de António de Alcântara Machado, em que um cego de Belém arma um salseiro ao descobrir que o trem em que navegava não tinha luz. Não pode ser! Estrada relaxada! Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! Os trens da CPTM são bem iluminados, dá para ver as pegadas no chão, os chicletes que já se incorporaram ao piso, o degrau metálico no final do vagão, onde é proibido sentar e onde todo mundo senta, claro. Mas falta brilho na maioria dos passageiros. Enlatados ou com espaço digno, seguem muitos em silêncio, numa apatia assustadora, dormindo sobre o colo
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