Na São Paulo de 1867, a construção da São Paulo Railway, linha de trem criada para transportar café do interior ao Porto de Santos e escoar os produtos da indústria paulista, foi considerada um dos marcos iniciais do desenvolvimento na cidade. A partir de 1960, com a mudança gradual do parque industrial para municípios vizinhos, os galpões abandonados e os cortiços em torno da orla ferroviária se transformaram no retrato da degradação urbana na capital.
Quase um século e meio depois, é em torno dessa cicatriz que corta São Paulo desde os tempos do café que a cidade pretende crescer e induzir o mercado imobiliário a investir nos próximos anos. “A área em torno do trem tem grande potencial de desenvolvimento, mas é ainda pouco habitada. A Prefeitura quer estimular o adensamento populacional dessas regiões”, afirma Miguel Bucalem, que vai assumir a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, pasta considerada estratégica no novo mandato de Gilberto Kassab (DEM).
O principal instrumento para incentivar o mercado imobiliário a investir na região são as 15 operações urbanas no entorno das linhas do trem e das futuras linhas do Metrô, instrumento que permite ao Município arrecadar recursos junto ao setor privado para investir em projetos para a região. Juntas, somam 250 km², cerca de 17% do território de São Paulo.
As operações urbanas Faria Lima e Água Espraiada, por enquanto, são as que mais avançaram. Na Faria Lima, criada em 1995, a Prefeitura arrecadou até hoje R$ 854 milhões ao permitir que o mercado construísse 297 mil m² além do permitido pelo zoneamento por meio da venda de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs). Na Água Espraiada, criada em 2001, a arrecadação já soma R$ 722 milhões.
A maior parte do dinheiro foi investida em obras viárias, como os dois túneis que cruzam a Avenida Faria Lima e a Ponte Estaiada. “Essas duas primeiras operações se basearam no modelo do automóvel. O recurso captado com a iniciativa privada foi usado basicamente para construir alternativas para os carros. As novas operações podem fazer a diferença”, analisa o arquiteto Lourenço Gimenez, que estuda a orla ferroviária.
Outras três – Água Branca, Centro e Jacu-Pêssego – já estão regulamentadas, mas ainda não lançaram mão dos Cepacs e estão sendo estudadas. Além dessas, a Prefeitura estuda prioritariamente as operações Vila Sônia, por onde vai passar a Linha 4 do Metrô, Vila Leopoldina, Diagonal Sul e Carandiru, áreas já procuradas pelo mercado imobiliário. Outras duas – Terminal Logístico João Dias e Amador Bueno – serão propostas na revisão do Plano Diretor, que o prefeito pretende votar na Câmara até o fim de 2010. “A ideia é usar parte do dinheiro arrecadado para investir nos transportes por trilhos. Na revisão do Plano Diretor vamos propor que sejam exigidos projetos urbanísticos mais detalhados para mostrar mais claramente ao mercado o que pretendemos para a região”, diz Bucalem.
PASSAGEIROS
O potencial de desenvolvimento da orla ferroviária começou a se mostrar viável a partir de 1995, quando os 240 km de linhas da CPTM na Grande São Paulo passaram a ganhar investimentos que ajudaram a mudar o perfil da rede, deixando de priorizar o transporte de cargas para transportar principalmente trens de passageiros. O intervalo entre trens mais modernos diminuiu de 18 para 6 minutos e fez a demanda crescer de 700 mil passageiros por dia para 2 milhões em 13 anos.
Bairros como Mooca, Brás, Lapa, Barra Funda e Vila Leopoldina passaram a ser visto com outros olhos pelo mercado. A possibilidade de ligar essas linhas a novas estações do Metrô aumentou ainda mais o interesse. “Sabemos que grandes investidores já estão procurando áreas em torno desse eixo. A Prefeitura precisa correr e se juntar a outras prefeituras, aos governos Estadual e Federal para evitar que o mercado construa antes que haja tempo de induzir a urbanização da área”, alerta o presidente da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, Jurandir Fernandes.
Vizinhos da linha do trem se queixam dos apitos a toda hora
Três regiões onde o governo quer promover o adensamento por meio da revisão do Plano Diretor já são atualmente alvos do mercado imobiliário. Às margens da linha ferroviária usada pelos trens metropolitanos, Barra Funda, Mooca e Ipiranga concentraram mais de 8 mil unidades comercializadas nos últimos três anos. Só que a reocupação até agora ocorre sem nenhum planejamento em conjunto com o poder público.
As construtoras já anunciam as futuras estações do Metrô e a facilidade de deslocamento por grandes avenidas ao vender imóveis nesses bairros. O barulho do trem, contudo, segue como a principal reclamação de quem tem a sacada quase à beira dos trilhos. É o caso de moradores de prédios recém-construídos ao longo da orla ferroviária que cruza a Barra Funda pela Rua Capistrano de Abreu. A dona de casa Marilda Gomes Leone, de 71 anos, que há sete meses trocou a Freguesia do Ó pela Barra Funda, reclama do trem, assim como a maior parte dos moradores do Home Station Nova Barra que fez um abaixoassinado em favor da modernização da linha ferroviária.
“A linha já estava aí antes de nós chegarmos. Mas é lógico que incomodam muito os apitos toda hora”, conta a dona de casa, que, no entanto, acha que lá está mais bem localizada que na zona norte. “Minha filha tem mais facilidade para ir ao emprego e estou bem no centro. Apesar do trem, a rua é pouco movimentada.”
O engenheiro químico Ronaldo Caruso, de 42 anos, também trocou a zona norte pela Barra Funda em 2008. Ele comprou um apartamento de três quartos para ficar mais próximo do trabalho, no centro. “Por mais que eu queira achar que compensou a troca, o trem me faz pensar o contrário todo dia. O primeiro apito ocorre às 4 horas e não para mais o dia inteiro. É difícil. Se soubesse, teria pensado melhor.”
Menos de três meses depois de se mudar da Pompeia para a Lapa, ao lado da linha férrea, a farmacêutica Renata Ruas de Alencar, de 36 anos, se diz arrependida. “Quando penso que vou passar anos da minha vida ouvindo esse apito do trem, tenho vontade de vender o apartamento. Não aconselho ninguém a morar perto da linha.”
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