Miguel Nítolo, jornalista
Assim como a sirene das fábricas, que marcou época na primeira metade do século passado, o apito do trem experimentou seus anos de glória. Tanto num quanto noutro caso, foi intensa a contribuição para o processo de modernização do país no ante e no pós-guerra. Apesar disso, a linha férrea não encontrou solo fértil para se disseminar pelo país; pelo contrário, avançou pouco, aquém das reais necessidades, mas satisfez o desejo do Estado, então o grande gestor do precioso patrimônio.
As instalações fabris evoluíram e, mais recentemente, colocaram o Brasil em destaque no cenário mundial. Já as ferrovias emudeceram: o apito esmaeceu, perdeu fôlego, e por pouco o trem não descarrilou de vez. Uma coisa não combina com a outra: é comum mundo afora ver a ferrovia ampliar espaços à medida que a produção ganha músculos. Aqui se deu exatamente o contrário: o país crescia enquanto o trem encolhia, uma trajetória inversa à ideia inicial que motivou o barão de Mauá a fundar a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis, inaugurada em 1854 com apenas 14 quilômetros, a primeira ferrovia brasileira e a semente do que viria depois.
O contrassenso é que a indústria e a economia de modo geral dependem em boa parte dos trilhos para receber e escoar riquezas, mas no exemplo do Brasil tiveram de se aninhar nos braços da rodovia, na contramão do que se vê fora daqui, notadamente entre as nações mais desenvolvidas. Lá, utilizaram à exaustão o trem para abrir novas frentes, ligar os pontos cardeais, e talvez o exemplo mais emblemático disso tenha sido dado pelos americanos na época da conquista do oeste.
Quando se fala de movimentação em massa de cargas, especialmente em países de dimensões continentais como o nosso, as ferrovias representam uma das mais eficazes opções de transporte. E isso é um entendimento pacífico, tanto que o governo chinês se convenceu de que a melhor maneira de enfrentar os reflexos da crise econômica que se abateu sobre o país seria ampliar a malha ferroviária local, atualmente em torno de 66 mil quilômetros, pouco diante do tamanho e da população da China. Ficou estabelecido que do total de US$ 264 bilhões que serão destinados à modernização e expansão da infraestrutura de transporte, US$ 88 bilhões ficarão com as ferrovias. Ou seja, os chineses buscam recuperar o tempo perdido e repetir, agora, o que alguns países, como os Estados Unidos – donos de uma malha com 162 mil quilômetros – fizeram há mais de cem anos.
E o Brasil, cabe perguntar, o que tem feito nesse aspecto? A malha brasileira, de 29 mil quilômetros – também acanhada ante o porte do território –, está passando por uma notória transformação, ganhando forças, mudando a face do setor. Tudo a passos lentos, é verdade, mas, justiça seja feita, o que se vislumbra agora, a despeito de todos os senões, é uma coisa que não se via há tempos. Começamos a implantar ferrovias no momento certo, em meados do século 19, mas fomos ficando pelo caminho. “Foi uma insensatez”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu programa semanal de rádio “Café com o Presidente”, referindo-se ao relaxamento nos investimentos quando mais o país precisava do trem. “Vamos retomar as ferrovias e não parar mais porque queremos interligar o Brasil de norte a sul, de leste a oeste, a fim de baratear o escoamento de nossa rica produção”, completou. Vale lembrar que a malha ferroviária brasileira chegou a ter 37 mil quilômetros nos anos 1950, e que o descaso agora mencionado pelo presidente foi o maior responsável pela esqualidez atual do setor.
Canibalismo
Em 1996, quando Brasília promoveu a privatização da linha férrea nacional (leia-se concessão), as ferrovias estavam carcomidas pelo tempo e afundando em prejuízos. “Era elevado o percentual de locomotivas imobilizadas, inoperantes, por falta de adequada manutenção”, diz o professor Telmo Giolito Porto, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No passado, diretor de Operação e Manutenção da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos e hoje diretor do Grupo Tejofran (corporação empresarial que, entre muitas atribuições, presta serviços de reparo ao setor ferroviário), ele recorda que nem sempre a recuperação era viável, em função da obsolescência e da prática do ‘canibalismo’. “Subtraíam peças de um equipamento para promover o conserto de outro”, conta.
É corrente a informação de que as empresas que arrendaram as linhas férreas se defrontaram com um quadro deplorável: 40% de 43,8 mil vagões estavam sucateados e 30% de 1,14 mil locomotivas se achavam em péssimas condições. Rodrigo Vilaça, diretor executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), lembra que as concessionárias investiram R$ 14,4 bilhões entre 1996 e 2007 na aquisição e recuperação de material rodante (ampliação da frota de vagões e locomotivas), em melhorias na via permanente, na introdução de novas tecnologias, na capacitação de pessoal e em campanhas educativas de segurança.
Representante das empresas responsáveis pelo transporte de carga das dez concessões ferroviárias nascidas a partir da desestatização do setor, a ANTF revela que elas podem ter desembolsado, no ano passado, R$ 2,5 bilhões com o mesmo propósito, e que os recursos empenhados pelo governo federal nas ferrovias concedidas à iniciativa privada somaram R$ 789 milhões até 2007. “O transporte ferroviário brasileiro deverá receber, até 2015, alguma coisa em torno de R$ 30 bilhões em obras de expansão da malha e na aquisição de novos equipamentos”, informa Vilaça. “Como resultado dos desembolsos que vêm ocorrendo, a produção ferroviária nacional aumentou em 87,6%, passando de 137,2 bilhões de TKU [tonelada por quilômetro útil transportada], em 1997, para 257,4 bilhões de TKU em 2007. E o índice de acidentes também teve uma redução de 80,7% no período”, acrescenta o diretor da ANTF. Números divulgados em fevereiro último mostram que a recuperação do material rodante e a compra de novos equipamentos haviam elevado a frota para 81,64 mil vagões e 2,22 mil locomotivas. Vilaça observa ainda que o setor continuará avançando acima da média de evolução do PIB. “Nos últimos anos, essa expansão foi de dois dígitos e, mesmo que haja retração no volume movimentado, as taxas deverão ser superiores a 6% ou 7% em 2009.”
Parcerias
A América Latina Logística (ALL), maior operadora com base ferroviária na América Latina, registrou em 2008 crescimento de 12% em volume em suas operações no território brasileiro, tendo desembolsado, no período, a soma de R$ 680 milhões na compra de vagões e locomotivas e no aparelhamento da via permanente e dos sistemas de informação. “A trajetória de crescimento nos volumes intermodais continua, principalmente com o aumento de 16% em contêineres, 14% em alimentos e 14% em produtos florestais”, afirma Sérgio Nahuz, diretor de Industrializados da ALL. A empresa é dona de uma malha de 21,3 mil quilômetros de extensão, com atuação nos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil, e em Paso de los Libres e Mendoza, na Argentina. “Seguimos confiantes nos fundamentos positivos da companhia e na sua capacidade de manter a trajetória de crescimento nos bons e nos maus momentos”, diz Bernardo Hees, diretor presidente da ALL. Ele ilustra essa confiança citando, como exemplo, o contrato firmado entre a companhia e a Rumo Logística, empresa de controle indireto do Grupo Cosan, um dos maiores produtores de açúcar e álcool do mundo, parceria que prevê a movimentação de 9 milhões de toneladas de açúcar a partir de Itirapina, no interior de São Paulo, em direção ao porto de Santos. “O investimento previsto pela Rumo é de R$ 1,2 bilhão ao longo de cinco anos, e a operação terá inicio em 2010”, esclarece.
Um outro gigante do setor, a companhia Vale, que opera a Estrada de Ferro Carajás (EFC)
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