Maria e lá vai fumaça

Maria Inês é uma senhora tipo mignon. Mais para baixa. Sóbria nos apetrechos. Muito elegante. Delicada até. Sempre de preto. Há três anos passou por uma recauchutagem completa, mas não emagreceu nadinha. Continua pesando as mesmas 33 toneladas e meia da época em que veio ao mundo, nos galpões da inglesa Sharp Stewart, em 1867. Tecnicamente chamada de locomotiva a vapor de manobra, trabalhou décadas nos pátios paulistanos da São Paulo Railway (SPR), ou Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, a famosa linha que descia café ao porto e subia de volta carregada de imigrantes e máquinas da industrialização. Tem, portanto, inestimáveis serviços prestados à história do País. É aí que Maria Inês faz jus a quem lhe dá o nome: a museóloga Maria Inês Mazzoco, uma senhora tipo mignon, mais para baixa, sóbria nos apetrechos, muito elegante. Delicada até. Sempre de preto. Como organizadora do riquíssimo arquivo da SPR (que guarda entre tantas jóias a planta original da Estação da Luz, por exemplo) e batalhadora pelo restauro de trens antigos e estações em ruínas, tem inestimáveis serviços prestados à história ferroviária do País. Mas, antes que ela solte fumaça pelas ventas, fique claro que é bem mais leve e bem mais moça que a xará de metal.


Suas biografias, contudo, rodam por trilhos que a toda hora se cruzam. Maria Inês Fumaça hoje leva turistas para passear em Paranapiacaba, a antiga vila de ferroviários encarapitada na Serra do Mar, em Santo André (SP). Das janelas do castelinho, a casa de madeira onde morava o engenheiro-chefe da ferrovia nos bons tempos, é possível vê-la aos sábados, domingos e feriados puxando o carro de passageiros por num trecho de 800 metros. O mesmo castelinho em que a bisavó da Maria Inês Museóloga trabalhou como governanta. A mesma Paranapiacaba onde o bisavô comandou o sistema funicular. Os dois se enamoraram e lá e vão quatro gerações sobre os trilhos. Maria Inês Fumaça carrega até 60 passageiros. Maria Inês Museóloga não carrega ninguém. Nunca se casou e nunca teve filhos – “porque eu não quis, porque eu não quis”, ela repete. Maria Inês Fumaça fatura R$ 300 por viagem (ingressos a R$ 5 por cabeça), em lotação máxima. Maria Inês Museóloga não ganha nada para continuar lutando pela preservação patrimônio público nacional. Ao contrário, paga. Aposentada da Rede Ferroviária Federal – a estatal que nos anos 50 encampou a SPR e nos 90 foi privatizada, abandonando à ferrugem e às traças as máquinas e os papéis que não interessavam aos compradores – ela tira do bolso “quase R$ 1.000 por mês” para correr atrás de parceiros, patrocinadores, políticos e boas almas em geral dispostas a ajudá-la a restaurar trens, vagões e estações, publicar livros sobre o arquivo da SPR e, sua maior obsessão, botar em pé um Museu Aberto da Ferrovia.


Só dá dor de cabeça. “Quando as coisas não andam como eu gostaria e eu estou a ponto de explodir as pessoas me dizem para largar tudo e ir cuidar da minha vida”, conta Maria Inês Museóloga. “Mas como se desiste da vida? A ferrovia é a minha vida.” Atenção, passageiros, isso não é retórica. Maria Inês Museóloga tem assunto único: trens e trilhos. Ela acorda, toma café, almoça, janta, dorme e sonha com eles. “Eu sou uma mala”, diz.


Mas de uma malice do bem, digamos assim. Sinal disso são os três carros de passageiros do início do século 20 que ela lutou para restaurar em parceria com a ONG Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) e patrocínio da MRS Logística. Três anos e R$ 1,1 milhão depois, eles estão tinindo de novos, valiosos registros da Belle Époque paulistana. Um deles, então usado por chefes de Estado, altos executivos da SPR e convidados especiais, é revestido de laca branca, tem vidros decorados, bagageiros de bronze e grandes sofás. Outro contém um pub inglês, com balcão de sete metros, banquetas altas, cristaleiras, copa e poltronas de vime.


“Os trabalho de recuperação se baseou muito nos documentos do arquivo da SPR”, conta o restaurador Júlio Moraes, ele também um apaixonado por trens. “Pedimos que uma fábrica interrompesse a produção por um dia para nos fazer um lote de cem lâmpadas que não existem mais no mercado especialmente para os carros. Os motores dos ventiladores de teto tiveram de ser reconstruídos por antigos artesãos, porque não há mais peças de reposição.” Ficou simplesmente um luxo, como diria o finado Athayde Patrese. E não era para menos. Gente muito fina viajou ali, como o poeta britânico Rudyard Kipling e o italiano Guglielmo Marconi, inventor do telégrafo. Os dois autografaram o livro de celebridades a bordo guardado por Maria Inês no arquivo da SPR.


Esses carros (“vagões são os de carga”, ela sempre corrige) estão estacionados num galpão de manutenção da MRS Logística, em São Paulo, cercados de alarmes e vigiados por seguranças armados. Maria Inês é uma moleca ao galgar as suas traiçoeiras escadinhas verticais. Mesmo com as mãos ocupadas por papeis, óculos escuros e BlackBerry, pa-pum e ela está lá em cima. São anos de janela. “Em minha primeira memória de infância eu estou com meus pais e meu irmão em uma estação correndo para subir no trem”, conta. “E vivi toda a meninice em uma vila de ferroviários, brincando entre as composições.”


Quando Maria Inês chega para visitar os carros antigos, o porteiro logo lhe estende algo: “O paninho, d. Maria”. É o manjado pedaço de tecido macio que ela usa para enxotar o pó de cima das mesas, esquadrias, portas, de todas partes de madeira. Fácil saber o que aconteceria se ela não fosse tão obsessiva nos cuidados. Do lado de fora do galpão descansa ao relento, no meio de uma imensa poça d”água, esperando manutenção, outra relíquia ferroviária brasileira, registro de nosso faroeste caboclo: a composição de alumínio metralhada por traficantes, em 2007, quando levava ministros, secretários e o governador fluminense, Sérgio Cabral, a uma cerimônia de inauguração no porto do Rio de Janeiro.


Nos sonhos irrealizados de Maria Inês, o Museu Aberto Ferroviário seria o local correto para recuperar, guardar e expor essas peças valiosas. De quebra, se der para enfiar na discussão o impacto causado pela lamentável opção do Brasil Grande pelas rodovias, pelos automóveis e caminhões, melhor. Seu projeto, que prevê uma escola para ensinar manutenção e preservação, está sendo analisado por um grupo de trabalho formado por secretarias do governo paulista (Transportes, Turismo e Cultura), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a ONG ABPF. “Esses carros, essas locomotivas, os vagões, os documentos da antiga SPR são do povo brasileiro. A população tem o direito de conhecer seu patrimônio”, ela diz. “Só quem aprende a dar valor ao patrimônio público e histórico é capaz de cuidar da fachada da própria casa.”


Do recente falatório sobre o sai-não-sai do trem-bala brasileiro, possivelmente ligando Campinas, São Paulo e Rio, Maria Inês pesca uma possibilidade para o museu: que tal a licitação, de cara, prever suas instalações, talvez próximas às estações, como acontece na Europa e na Ásia? Maria Inês não vai desistir. “É muito insistente”, afirma Helio Gazetta, um dos diretores da ABPF. Ou “uma mala”, como ela prefere.


Vinte dos 56 anos de Maria Inês foram vividos na Estação da Luz, em São Paulo. Os engraxates, o pessoal do guarda-volumes, os policiais da gare, a d. Chiquita da sala das senhoras (recinto destinado ao toalete das damas), as prostitutas dos arredores, todos a chamavam de “doutora” (pela frente) e “a dona da estação” (pelas costas). Os maquinistas soltavam dois apitos e mandavam beijos quando a viam na plataforma. De manhãzinha, ao chegar de carro para o batente, ela dava bom dia à torre do relógio. À noite, ao fechar as portas da área administrativa, muitas e muitas vezes madrugada funda lá fora, despedia-se com um “até amanhã, minha querida”.


Por isso a necessidade de deixar o prédio em 2006, para a chegada do Museu da Língua Portuguesa,

Fonte: O Estado de São Paulo

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