Privado, TAV de Taiwan está quase falido

Às 12h de terça-feira, o trem-bala chegou pontualmente a Taipé, a capital de Taiwan, após percorrer 345 km em exatos 90 minutos, vindo de Zuoying, estação próxima à segunda maior cidade taiwanesa, Kaohsiung, no extremo sul da ilha. O trem é espaçoso e confortável, apesar de menos sofisticado internamente que os similares europeus e japonês. O trem-bala taiwanês, a maior obra de engenharia local, é um orgulho nacional. A não ser por um aspecto: o consórcio privado que construiu e opera a ferrovia está quase falido. E o governo pode ter de assumir a empresa.


No momento em que o Brasil se prepara para lançar o seu projeto de trem-bala, a experiência de Taiwan pode ser útil por alguns aspectos. O principal, talvez, é o modelo de negócio. Ao contrário de Europa, Japão e China, onde os sistemas de trem de alta velocidade são estatais, Taiwan optou pela concessão da construção e operação a um consórcio privado, parcialmente financiado pelo Estado, como pretende fazer o governo brasileiro.


A opção de Taiwan pelo modelo BOT (built-operate-transfer), isto é, construção e operação pela empresa concessionária e transferência do bem ao Estado após o período de concessão (de 35 anos), foi tomada em 1993. “O Estado não tinha dinheiro para construir o trem-bala”, disse Cheng-chung Young, dirigente do Escritório do Trem de Alta Velocidade no Ministério dos Transportes de Taiwan, órgão do governo que monitora a operação. Segundo ele, o modelo foi o consórcio Eurotunnel, que construiu e opera o túnel sob o Canal da Mancha, entre França e Reino Unido, e que já passou por uma série de dificuldades financeiras. “À época, parecia um caso de sucesso.”


Taiwan licitou o projeto em 1997. Venceu o consórcio THSRC, formado por cinco empresas locais. O contrato foi assinado em 1998. O consórcio vencedor optou então por usar a tecnologia do trem-bala japonês, o Shinkansen. Após uma série de atrasos, as obras começaram apenas em março de 2000. O prazo final pulou de 2003 para 2005, depois 2006, até a inauguração em 5 de janeiro de 2007. O governo brasileiro prevê que a linha Rio-São Paulo-Campinas, com mais de 500km, ficará pronta até a Olimpíada de 2016.


O projeto foi dificultado pela acidentada topografia de Taiwan. Cerca de 70% do território taiwanês é tomado por montanhas e colinas. Para vencer esse obstáculo, foi necessária a construção maciça de vias elevadas (pontes). Dos 345 km da linha, 252 km (73%) correm nessas vias elevadas. Há ainda 63 km (18%) de túneis e apenas 30 km assentados no solo. O trem-bala brasileiro, com 511 km previstos, teria 18% de túneis e 21% de vias elevadas.


Com a construção do trem-bala, o tempo de viagem entre o norte e o sul da ilha caiu sensivelmente. Para percorrer o trecho entre os dois extremos, leva-se pouco mais de cinco horas de carro ou trem convencional. De avião, a viagem leva cerca de uma hora. A construção das oito modernas estações em operação ajudou ainda a recuperar regiões degradadas ou subutilizadas nas cidades onde o trem para.


Apesar de as duas maiores cidades taiwanesas, Taipé e Kaohsiung, não serem muito grandes (2,6 milhões e 1,2 milhão de habitantes, respectivamente), o trem-bala atravessa o corredor da costa oeste da ilha, que concentra 90% dos 23 milhões de habitantes de Taiwan.


O contrato de concessão previu que o governo era responsável pela definição do projeto, a desapropriação de terras e pelas obras subterrâneas próximas à capital, ao custo de 105,7 bilhões de dólares taiwaneses, orçamento que teria sido cumprido. O consórcio privado ficou responsável pelo restante das obras, incluindo a construção das estações, e pela aquisição dos equipamentos e sistemas, ao valor orçado de 407,6 bilhões de dólares taiwaneses. Esse orçamento estourou em pouco mais 10%, disse Sophia Lin, responsável financeira do Escritório do Trem de Alta Velocidade.Segundo ela, esse percentual de estouro é “muito bom” para obras desse porte.


No total, estima-se que o trem-bala taiwanês custou cerca de US$ 15 bilhões.


“Mas a parte técnica não foi o problema”, disse Young. Os problemas básicos do trem-bala taiwanês são: a operação ainda dá prejuízo; e, mesmo que desse um pequeno lucro, dificilmente isso bastaria para amortizar os juros dos empréstimos bancários que financiaram a obra. Ou seja, o sistema tende a ter déficit crônico.


Quando o contrato de concessão foi assinado, as bolsas em todo o mundo estavam em alta. Era o boom da internet. Mas quando o consórcio privado precisou captar dinheiro para as obras, a recessão de 2000-2001 já havia começado nos EUA. O preço das ações caiu muito, o que tornou mais difícil a prevista abertura de capital da empresa. E os bancos estavam avessos a riscos, o que elevou o custo dos empréstimos.


“Não esperávamos que esses problemas fossem tão graves. Nosso sistema financeiro não estava acostumado a um projeto desse porte e não podia assumir os riscos. Por isso, pediu ao governo que garantisse os empréstimos sindicalizados [para o consórcio privado]. Isso levou muitos anos para ser negociado e atrasou o início das obras”, disse Lin.


O governo garantiu um empréstimo sindicalizado de 300 bilhões de dólares taiwaneses. Depois houve outro, menor. A dívida atual do consórcio supera 400 bilhões de dólares taiwaneses (cerca de US$ 13,2 bilhões, ao câmbio atual).


“A dívida agora é um problema, pois o pagamento de juros é muito alto”, disse Lin. Isso apesar de a média da taxa de juros contratada para esses empréstimos ser de 2,5% ao ano. No caso do Brasil, espera-se que o financiamento do BNDES para o trem-bala custe TJLP mais 1% ao ano, o que hoje equivaleria a 7% ao ano.


O governo de Taiwan teve ainda de financiar indiretamente o consórcio THSRC, quando a empresa abriu capital. “Em 2001-02, estávamos no fundo do poço e tínhamos problemas para levantar capital”, disse Lin. Quando da abertura de capital, não houve o interesse esperado do mercado, e o governo teve de socorrer a operação, orientando fundos ligados ao setor público a comprarem ações do consórcio. Segundo a imprensa taiwanesa, as cinco empresas que formaram o consórcio detêm hoje 27,93% das ações negociadas da empresa; já o governo, por meio de agência e fundos, detém 19,52%.


O prejuízo operacional, de cerca de US$ 780 milhões em 2008, é atribuído pelo consórcio em parte ao fato de a operação ainda estar muito aquém da média de 280 mil passageiros/dia prevista no projeto inicial. Hoje essa meta é considerada ambiciosa demais. Este ano, o trem-bala transportou pouco mais de 87 mil passageiros/dia. “A receita operacional é 30% da esperada”, afirma Lin.


Ela admite que houve excesso de otimismo na projeção inicial, mas culpa também a piora na condição da economia. A recessão, que atinge fortemente Taiwan desde o ano passado (o PIB deve cair mais de 7% este ano), fez com que o número de passageiros ficasse praticamente estagnado.


O preço da passagem para o trecho mais longo, de 345 km, é de US$ 44. Mas, com a queda na demanda, o consórcio vem fazendo promoções. Quem viajou na terça-feira pagou US$ 39.


Lin, que monitora a parte financeira da operação para o governo, diz que os termos da concessão criaram ainda problemas contábeis para a empresa. O período da concessão, de 35 anos, começou a contar a partir da assinatura do contrato, em 1998. Isso implica que sobrou pouco mais de 26 anos de operação. Como, ao final, toda a obra e os equipamentos devem ser entregues ao Estado sem ônus, a depreciação que deve ser registrada no balanço é muito alta e inviabiliza o lucro.


Em setembro, diante do risco de o consórcio ficar sem capital para operar o trem-bala, o governo de Taiwan interveio, forçando a troca de comando na empresa e assegurando 50% dos assentos no seu conselho. O objetivo seria reforçar a percepção de que o negócio tem a garantia do Estado, o que poderia facilitar a reestruturação da dívida, a negociação

Fonte: Valor Econômico

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