José Roberto Campos, de Zurique
A Suíça é provavelmente o único país do mundo onde a Constituição determina que o sistema ferroviário tenha prioridade absoluta no transporte de cargas. No artigo 84 da Carta há ainda a proibição expressa de aumento da capacidade das rodovias nas regiões dos Alpes, que abarcam dois terços do território suíço.
Os suíços são conhecidos mundialmente pelos seus chocolates e pela precisão dos relógios que fabricam, mas pouco lembrados por serem o povo que mais anda de trem no mundo e mais faz referendos. Na média, cada cidadão viaja 2.103 km sobre trilhos por ano, bem mais até mesmo que os japoneses em seus fantásticos trens-bala (média de 1.976 km). A distância percorrida per capita é mais relevante já o país não tem dimensões continentais, como EUA e Brasil, mas só 41.285 km2 de área, o equivalente pouco mais de um sexto dos 248 mil km2 do território do Estado de São Paulo.
A primazia do transporte ferroviário, porém, está longe de ser idiossincrasia. Com topografia acidentada e pouco espaço, a Suíça é cortada por um dos corredores de tráfego de mercadorias mais movimentados da Europa, o que liga Roterdã, na Holanda, a Gênova, na Itália. No ano 2000, 1,4 milhão de caminhões de carga cruzaram os Alpes suíços, um pesadelo ecológico com potencial para destruir o ambiente, e a paz, dos bucólicos povoados do país. Em três referendos na década de 90 – 1992, 1994 e 1998 – foram mudadas as prioridades em favor das ferrovias e dado um basta na expansão das rodovias nos Alpes. Em 2001, foi instituída uma taxa sobre caminhões pesados para sustentar a expansão do sistema ferroviário de cargas e passageiros, e com ela criado um fundo de transportes públicos. Esse fundo foi complementado por aumento de 0,1% do IVA (imposto sobre valor agregado) e pelo imposto sobre combustíveis, que destina a ele 25% de suas receitas.
A taxa sobre os caminhões pesados enfureceu os sindicatos de caminhoneiros locais e estrangeiros. A média ponderada da tarifa, que leva em conta a distância percorrida, o peso do veículo e o grau de poluição, é hoje de € 202. A tarifa máxima é de € 238. Esse imposto desencorajador já financiou dois terços dos € 20 bilhões aplicados no sistema de transportes até agora. A Suíça, que não faz parte da União Europeia, teve de entrar em acordo com seus vizinhos e ofereceu algumas contrapartidas, como a permissão para circulação de caminhões maiores, de até 40 toneladas (antes apenas veículos com até 3,5 toneladas eram permitidos).
Para que as empresas não perdessem competitividade ao serem estimuladas a usar um transporte mais caro, o governo suíço subsidia parte da diferença entre o preço de ambas. As subvenções consomem € 200 milhões por ano, estima Juan Alberto Salomon, um engenheiro civil argentino especializado em gerenciamento de grandes obras no Escritório Federal de Transportes.
Os suíços detestam improvisar – seus vizinhos dizem que eles são incapazes até de conjugar o verbo. As mudanças no sistema de transporte consumiram anos de discussão e a criação do fundo, pelo menos oito anos. Ao decidir colocar boa parte do futuro sobre trilhos, o país teve de encarar opções caras e enormes desafios tecnológicos – fazer longos túneis perfurando as rochas dos Alpes é o maior deles. A Suíça tem conseguido vencê-los. No dia 1º de junho estavam concluídas 96,2% das escavações do maior túnel do mundo, o de São Gotardo, que liga Erstfeld a Bodio, no sudeste do país, com 57 km de extensão. Ele suplanta o túnel de Seikan, com 54 km, que liga as cidades japonesas de Hokaido e Honshu, e é 7 km maior que o Eurotúnel, entre França e Inglaterra.
São Gotardo, iniciado em 1998, entrará em operação em 2017, após consumir € 7,5 bilhões. Ele é uma peça-chave para que o planejamento do transporte de cargas por trilhos para 2020 tenha êxito. Pelo túnel gigante deverão passar 8 milhões de passageiros e 40 milhões de toneladas de mercadorias por ano. As rotas transalpinas são compostas ainda por um túnel 34,6 km a leste, o de Lötschberg, concluido em 2007, entre Frutigen e Raron, e outro ao sul, de 15,4 km, entre Vigana e Vezia, que deverá ficar pronto em 2019.
O túnel de Lötschberg dá uma ideia das vantagens que se buscam com essas notáveis e dispendiosas obras de engenharia. Foi possível encurtar a frequência dos trens para 3 minutos, elevar a velocidade dos trens de carga de 100 km por hora para 160 km por hora e a dos trens de passageiros, de 200 km para 250 km por hora. Com dois anos de operação, a taxa de ocupação superou as previsões e atingiu 77%. Uma viagem de Berna a Milão, na Itália, foi reduzida em 38 minutos. Com São Gotardo, que também ligará a rede suíça à rede de trens de alta velocidade europeia, ir de Zurique a Milão consumirá 2 horas e 40 minutos, uma hora a menos do que hoje, com ganhos de velocidade no transporte de cargas e pessoas semelhantes aos de Lötschberg.
Mais trens com maior velocidade a intervalos de tempo menores levarão também ao cumprimento da meta principal, que é reduzir o número de caminhões de carga rodando nos Alpes dos 1,1 milhão atuais para 650 mil em 2020. Isso é vital na contabilidade abrangente dos custos do maior túnel do mundo. O retorno do investimento tem de ser encarado com uma abordagem global, e não apenas da obra isoladamente, avalia Salomon. O investimento não se pagará só com tarifas, que cobrirão um pouco mais que os custos operacionais. Se as ferrovias não avançassem, haveria 500 mil caminhões a mais circulando nos Alpes, custo que tem de ser levado em conta em todos os aspectos, econômicos, ambientais etc.
Os números vão na direção do argumento. Entre 2000 e 2008, o número de caminhões pesados trafegando nos Alpes diminuiu em 130 mil, de 1,4 milhão para 1,27 milhão. Na ausência da taxa, subiria para 1,6 milhão. As ferrovias, por seu lado, aumentaram o volume de cargas no período em 25%, e já são responsáveis por 64% do transporte transalpino de mercadorias no lado suíço. Na França, esta proporção é de apenas 18,2% e, na Áustria, de 28,5%, segundo dados do Escritório Federal de Transportes da Suíça.
Suíços são os campeões mundiais em referendos
O sistema político suíço é uma fábrica de referendos, nos quais tem a liderança mundial. Dois terços de todos as consultas populares do mundo são feitas aqui, afirma Thomas Kellenberger, porta-voz da ZVV, a empresa estatal que supervisiona e financia os transportes públicos no cantão de Zurique, o mais populoso do país. Uma das invejáveis razões para o grande ativismo dos suíços é a obrigação de consultas populares para qualquer obra que envolva gastos do Estado superiores a 3 milhões de francos suíços, ou US$ 2,7 milhões.
O comparecimento aos referendos não é obrigatório e, segundo o governo suíço, a participação média tem girado ao redor de 40%. Para estimular ainda mais a participação, aos que não comparecem às urnas é enviado por correio um pedido de manifestação – vota-se por correio. O governo, segundo Kellenberger, estuda agora como permitir a votação por e-mail e celular.
Foi por meio de referendos que as leis obrigaram o governo suíço a oferecer pelo menos quatro frequências de transporte diárias a vilarejos com até cem habitantes, além de serviços de telecomunicações. Foi por meio deles também que os habitantes de Zurique estabeleceram a obrigação legal, na cidade, de se ter o acesso a um meio de transporte no raio de 250 metros, não importa onde você esteja, ou que um cidadão não gaste mais do que cinco minutos para encontrar um meio de locomoção.
A ZVV gere uma malha de 3.500 km, onde se locomovem por 171 municípios 2 mil trens, ônibus, bondes e barcos. A responsabilidade pela operação fica a cargo de oito empresas privadas, que coordenam outras 35. Todo o dinheiro das vendas das passagens vai para os cofres da ZVV e, só depois, volta às empresas como pagamento pelos serviços prestados.
O mote da ZVV é
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