Vi diversos relatos, vídeos e fotografias das cidades que foram arrastadas pelos rios Mundaú e Paraíba (e também outros) nas cidades do sul de Pernambuco e norte de Alagoas no dia 19 e seguintes. A maioria delas tinha ferrovia: ou estavam na linha sul de Pernambuco (trecho da Recife-Maceió), ou no ramal do Colégio (Lourenço de Albuquerque-Colégio-Propriá).
Esse trecho estava inoperante desde a privatização (grande privatização!!!) em 1997 e ainda por cima teve uma queda de ponte perto de Lourenço de Albuquerque em 2000, se não me engano, que serviu para a concessionária CFN abandonar a linha de vez.
Sem jamais utilizá-la, por volta de 2005-6 a concessionária começou a recuperar a linha, do Cabo, PE até Colégio, AL, divisa com SE, parece que pressionados pelo MP, políticos locais, etc. Os trechos eram antigos (do Cabo até Paquevira, dos anos 1880; de Paquevira a Lourenço de Albuquerque, de 1896 e de Lourenço a Propriá, de 1912-20 – este último o ramal de Colégio) e parece que mesmo nos últimos tempos de RFFSA pouquíssimo usados. A produção em volta era praticamente só de cana e esta já estava seguindo para os portos locais de caminhão, mesmo. Os trens de passageiros entre Recife e Maceió acabaram em 1977, bem como os de Maceió-Aracaju (estes pelo ramal de Colégio) na mesma época. Sobraram os trens de suburbio Recife-Cabo e Maceió-Lourenço.
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Curioso que essa linha é, pelo menos em teoria, estratégica: por ela se liga o norte ao sul do Brasil. Sem ela, nenhum trem pode sair de São Paulo, Rio ou Salvador e atingir Recife e Fortaleza, por exemplo. Durante a 2a guerra, com o problema dos navios na costa atacados por submarinos, essa linha em Alagoas e PE já existia, mas, mais ao sul, não: não havia ligação entre Salvador e Monte Azul, MG e os trens do sul não podiam ir para o norte e vice-versa. Como as rodovias eram um lixo federal, Vargas forçou em 1942 a construção do trecho Contendas-Monte Azul para concluir a ligação.
No início, a construção foi vigorosa, mas à medida que os alemães foram passando de virtuais vencedores a perdedores certos na guerra, a velocidade de construção foi arrefecendo. Tanto que o trecho Contendas-Monte Azul (boa parte de serra e com muitas curvas) somente foi oficialmente entregue em 1950, quando a guerra já era um passado distante. Pelos horários de trens de passageiros pós-1950, o tempo médio de uma pessoa que tomasse um trem em São Luiz, MA, para chegar a Livramento, na divisa com o Uruguai, depois de inúmeras baldeações (havia quebra de bitolas), era de 24 dias (!!). Só mesmo um aventureiro para fazer uma jornada dessa. Trens de carga que fizessem o mesmo percurso? Pode ser que houvesse, mas tenho enormes dúvidas.
Já a recente reforma da linha Cabo-Colégio estava sendo feita a passo de tartaruga – afinal, cinco anos para se trocar os dormentes de um trecho de 550 km é não se importar muito com o resultado – fora outros reparos que certamente existiam no leito depois de anos de abandono. Mas eram reparos apenas, além da reconstrução de uma ponte. Pode-se ver em todas as fotos de trilhos retorcidos pela enchente que os dormentes eram novos.
Com reforma desleixada ou não, uma boa grana foi gasta e jogada fora por causa de enchentes totalmente inesperadas e que jamais existiram ali nessa magnitude. Além do mais, diante da destruição reinante, que muitos já comparam com o terremoto do Haiti (vem aquela célebre afirmação, o Brasil não precisa de terremotos), a prioridade deve ser, sem dúvida, resolver os problemas da paupérrima população da região, que agora tornou-se mais pobre ainda, com suas habitações totalmente destruídas, sem estradas de rodagem, também destruídas, sem comida, telefone, água, eletricidade, internet e o escambau. Nesse ambiente, quem precisa de uma estrada de ferro? É a última das prioridades numa região que não vinha utilizando a que possuía.
Para mim, isso significa o seguinte: jamais vão construir outra ferrovia por ali. O que ficou a partir do Cabo, PE e a partir de Colégio, AL, fica ali; o resto entre os dois trechos vai ser abandonado de vez. Para que afinal se reconstruir uma linha com um trajeto obsoleto e que já não tinha função? Mesmo que, num milagre dos céus, resolverem fazê-la, deveria ser num trajeto totalmente diferente do que existia até o último dia 19 de junho e novamente servindo de ligação norte-sul estratégica – mas será que alguém realmente pensa nessa ferrovia dessa forma, ainda mais com a ferrovia Norte-Sul novinha em folha avançando Goíás abaixo? (Está bem, ainda não está pronta, mas, pelo menos desta vez, sejamos otimistas e acreditemos que ela vai pelo menos atingir um trecho funcional da antiga E. F. Goiaz próximo a Goiânia em poucos anos).
Despeçamo-nos, pois, das velhas ferrovias de Alagoas e do Sul de Pernambuco. Torçamos para que os trechos contínuos a partir do Cabo e do Colégio que sobraram intactos venham a ser utilizados para alguma coisa útil e rentável – um veeletezinho da vida, por exemplo, como o de Arapiraca (cuja cidade parece não ter sido atingida) ou algum terminal de carga de açúcar ou álcool que apareça por ali por algum milagre divino.
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