Ao completar 100 anos, a lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré ressurge das cinzas como centro de uma polêmica que envolve o futuro do desenvolvimento econômico e da biodiversidade na isolada fronteira de Rondônia com a Bolívia. A questão concentra-se no município de Guajará-Mirim, a 331 km de Porto Velho (RO), onde os antigos trilhos foram engolidos pela mata desde a sua completa desativação há 40 anos, e 93% do território está dentro de parques, terras indígenas e outras áreas protegidas que restringem atividades produtivas, como o agronegócio que movimenta a economia no restante do Estado.
No cenário de estagnação, o projeto de reativar um trecho da chamada “Ferrovia do Diabo” para fins turísticos é defendido por lideranças empresariais, políticas, sindicais e da sociedade civil, na esperança de se recuperar pelo menos em parte o prestígio do passado, quando o lugar funcionava como entreposto da borracha e madeira transportadas pelos rios amazônicos para exportação via oceano Atlântico.
“Somos conhecidos como ‘município verde’, mas em que medida isso de fato nos tem beneficiado?”, pergunta o prefeito Atalibio Pegorini (PR-RO). Sem incentivos no lado do Brasil, produtos florestais são hoje mandados para beneficiamento na Bolívia e de lá seguem para exportação – caminho inverso do que se imaginava no começo do século XX a partir da antiga ferrovia. O turismo e sua cadeia de serviços teria o potencial de mudar a atual realidade no longo prazo. “Reativar os trens é mais do que uma questão econômica, mas de resgate cultural, identidade e autoestima”, completa o prefeito.
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“No aspecto ambiental, o projeto contribui para gerar renda e para a maior valorização da floresta e outros atrativos naturais, com menor risco de degradação por atividades de impacto danoso, como a criação de gado fora dos padrões sustentáveis”, argumenta o empresário Dayan Saldanha, integrante do movimento local que pretende dar um novo rumo a esse pedaço da Amazônia que escapou da destruição.
A celebração do centenário da primeira viagem oficial de passageiros na antiga linha férrea, dia 1º de agosto, acende o debate. Além de um abaixo assinado que circula na cidade para envio à Presidência da República, a Assembleia Legislativa de Rondônia iniciou uma campanha para a estrada de ferro ganhar da Unesco o título de Patrimônio da Humanidade, o que resultaria em maior visibilidade e, possivelmente, mais investimentos.
No curto prazo, o objetivo é incluir a revitalização de 27 km de trilhos em Guajará- Mirim, ao custo de R$ 30 milhões, na lista das compensações obrigatórias pelos impactos da Usina Hidrelétrica de Jirau. Estudo de viabilidade encomendado à Associação Brasileira de Preservação Ferroviária mostrou que o negócio pode ser viável se a recuperação dos trilhos ocorrer em diferentes etapas. A Energia Sustentável do Brasil, concessionária responsável pela usina, alega que o projeto não se justifica economicamente e que o município não dispõe de recursos para efetuar as desapropriações para a retirada dos moradores que invadiram a faixa de domínio da ferrovia.
O licenciamento da hidrelétrica previa inicialmente a reativação de outro trecho da ferrovia, no município de Nova Mutum. Mas a obra também foi considerada inviável e engavetada – apenas um museu será construído na região.
“Em substituição ao item não executado, recomendamos a reforma dos trilhos em Guajará Mirim”, afirma Beto Bertagna, superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em Rondônia. O assunto está agora no Ministério Público Federal. “É preciso achar uma solução econômica”, defende Basílio Leandro, secretário estadual de Turismo, informando que o governo tomou empréstimo de R$ 28 milhões junto ao BNDES, grande parte a ser repassada para Guajará-Mirim. A antiga estação de trem da cidade foi recentemente reformada com recursos estaduais e da Caixa Econômica Federal, mas falta a recuperação das duas locomotivas históricas.
Em contraste com a riqueza do passado, a pobreza atinge vilarejos ao longo dos trilhos abandonados. No Distrito do Iata, chama atenção a estrutura faraônica de um hotel-escola inacabado por irregularidades nas verbas da Universidade Federal de Rondônia. A localidade, ex-celeiro agrícola que tinha a produção escoada pela Madeira-Mamoré, é hoje reduto de “órfãos da borracha”.
O lavrador Hamilton Lázaro limpa com a foice o mato que cobre a ferrovia, para conseguir passar de bicicleta. Ele migrou de São Paulo para aventurar-se nos garimpos e encontrou próximo àqueles trilhos um refúgio. “A retomada das locomotivas só ocorrerá se realizada pela hidrelétrica, não pelo governo”, ressalta Lázaro, sem acreditar nas promessas de ano eleitoral.
No rio Mamoré, é intenso o fluxo de barcos para a cidade gêmea de Guayaramerin, no lado boliviano, zona de livre comércio. A construção de uma ponte de R$ 300 milhões para a ligação com o oceano Pacífico foi adiada pelo governo brasileiro. À beira daquele rio repleto de corredeiras, o povoado boliviano de Cachuela Esperanza guarda os resquícios do império econômico erguido no começo do século XX pelo empresário Nicola Suarez, herói nacional conhecido como “rey de la goma”. Além de casarios em ruínas ocupados hoje por famílias sem-teto, o lugar preserva antigos galpões que estocavam a borracha antes de atravessar o rio para embarcar na Madeira-Mamoré rumo ao exterior.
A imponência do teatro General Pando, frequentado à época por artistas internacionais, reflete o poderio do lugar. “A esperança agora é a construção de uma nova hidrelétrica já acordada entre Brasil e Bolívia”, afirma Eufronio Gonzales, 97 anos, ex-piloto de barco do visionário Suarez.
A região na fronteira entre os dois países caiu no esquecimento, mas conservou estoques naturais. “O isolamento gera oportunidades, como o ecoturismo, que poderá expandir-se com a ferrovia reativada”, destaca o escritor e empresário Paulo Saldanha, proprietário de um hotel de selva próximo a Guajará-Mirim com vista para o encontro da água negra do rio Pacáas Novos com a marrom do Mamoré. Sem a valorização da floresta conservada em pé, proliferam-se ameaças como as que rondam a Reserva Extrativista do rio Ouro Preto.
A área foi criada na década de 1990 para abrigar as famílias descendentes dos chamados “soldados da borracha”, na maioria migrantes nordestinos que fugiram da seca para trabalhar nos seringais. “Hoje o lugar é disputado por criadores de gado e búfalo, com risco de impactos ambientais”, alerta Samuel Nienow, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio).
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