O economista Bernardo Figueiredo faz parte de um seleto grupo de assessores que gozam de prestígio junto à presidente Dilma Rousseff. Ele foi assessor especial da Casa Civil quando a então ministra coordenava o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Depois, foi indicado para o cargo de diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), consolidando-se como homem de confiança do governo na área de infraestrutura. No início deste ano, a presidente recomendou ao Senado a renovação do mandato de Figueiredo na presidência da Empresa de Planejamento e Logística (EPL). O auxiliar trocou uma diretoria de órgão regulador pelo comando de uma estatal. Caiu para cima, sem esconder que fora convocado para fazer um serviço que não estava sendo executado conforme o esperado pelos ministros dos Transportes, dos Portos e da Aviação Civil: “Recebi um pato que anda, nada e voa. Terei de transformá-lo num triatleta”.
Respaldado pela presidente, Figueiredo foi peça-chave na definição das regras de concessão do segundo lote de aeroportos à iniciativa privada. Também está nas mãos dele o desenho das novas licitações de rodovias. Com as medidas, a presidente quer reduzir as tarifas cobradas dos usuários e melhorar a qualidade dos serviços prestados. Figueiredo sabe disso, mas, segundo técnicos do próprio governo, não é a pessoa talhada para cumprir essa missão. Pelo contrário, ele atuaria de acordo com os interesses das empresas e faria vista grossa a irregularidades praticadas pelos concessionários de serviços públicos. É o que sustenta o relatório final de uma comissão especial do Ministério dos Transportes ao qual VEJA teve acesso. A comissão foi criada no ano passado para apurar denúncias de irregularidades cometidas pela empresa América Latina Logística (ALL) ao prestar serviço de transporte ferroviário no Rio Grande do Sul.
Num texto de 112 páginas, concluído em novembro, cinco analistas e especialistas em infraestrutura dizem que a ANTT – que foi dirigida por Figueiredo entre 2008 e 2012 – permitiu que a ALL desrespeitasse de forma sistemática o contrato de concessão, provocando prejuízos à população. Responsável por regular e fiscalizar o mercado, a ANTT teria sido comprada por ele.
“A ANTT vem demonstrando não ter qualquer gerência ou controle sobre a oferta do serviço de transporte ferroviário de cargas”, sustenta um dos trechos do relatório. “Figura-se que sua deficiência está tanto na falta de autoridade quanto na negligência, omissão e descompromisso para fazer valer o total cumprimento das obrigações contratuais.” Os técnicos do governo listam quase duas dezenas de cláusulas desrespeitadas pela ALL para justificar as criticas à agência reguladora. Figueiredo não é citado nominalmente, porque a comissão foi criada apenas para analisar o eventual descumprimento de cláusulas contratuais, mas sua gestão é o alvo principal dos técnicos. Eles criticam, por exemplo, o fato de a ANTT ter tornado as multas aos concessionários um mero exercício de ficção. Entre 2009 e 2011, foram produzidos dezenove relatórios de inspeção no Rio Grande do Sul, dos quais seis resultaram em multas de 10 milhões de reais. “Nenhuma dessas multas foi paga. Segundo informado e também constante da planilha de informações da ANTT, não houve a abertura de processos judiciais para a execução dessas multas”, dizem os técnicos do governo. Eles apontam ainda um problema complementar.
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Na gestão de Figueiredo, os fiscais que trabalham na ponta foram proibidos de multar os concessionários, decisão que passou a ser exclusiva da direção em Brasília. Um grupo de fiscais se insurgiu contra a medida. Em reação, a cúpula da ANTT abriu processo disciplinar contra eles. No último dia 19 de dezembro, o procurador da República Osmar Veronese pediu explicações à corregedoria da ANTT sobre o cerco aos fiscais rebelados. Veronese é um dos seis signatários de uma representação do Ministério Público Federal ao Tribunal de Contas da União (TCU) que também denuncia desrespeito aos contratos na área de ferrovias. “Há duas catástrofes no setor ferroviário. Uma é a gestão da ANTT que não autua, não multa e se transformou num escritório de representação das concessionárias. Outra é a qualidade do serviço prestado pela ALL”, diz o procurador. O relatório final da comissão pede a responsabilização das autoridades sem citar nomes. Os alvos preferenciais são diretores e ex-diretores da ANTT. De forma discreta, há sugestão até para que a cúpula do Ministério dos Transportes seja investigada.
Procurados, o ministério e a ANTT não comentaram as conclusões da comissão. Já Figueiredo disse que não foi ouvido nem informado oficialmente do teor do relatório. Para conhecê-lo, ele bateu à porta do gabinete do ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos. “Eu concordo com 100% do que a comissão e o Ministério Público falam sobre a situação do setor ferroviário e com a angústia decorrente dessa situação, mas os fatos narrados ocorreram antes de eu assumir a ANTT”, alegou Figueiredo. Ele ponderou que, sob o seu comando, a agência passou a multar as empresas, a cuidar do patrimônio da extinta Rede Ferroviária Federal, evitando sua dilapidação pelas concessionárias, e a regular e fiscalizar o setor. Essas medidas meritórias teriam sido ignoradas pelos técnicos que fizeram o relatório. “A minha gestão é responsável por 70% das multas aplicadas pela ANTT”, afirmou, ressaltando não saber quanto, de fato, foi pago. “Na ânsia de encontrarem culpado, as pessoas que fizeram o relatório não levaram em conta o que foi feito, a vida real.” A queda de braço com Figueiredo tem um ingrediente que não aparece no relatório, mas ferve nos bastidores.
Trata-se de um “vício original grave”, nas palavras do procurador Osmar Veronese. Qual seja? Como funcionário da antiga Rede Ferroviária Federal, Figueiredo participou da elaboração da proposta de privatização das ferrovias. Depois, foi executivo de uma empresa que ganhou dois lotes privatizados. Em um dos lotes, essa empresa era sócia justamente da ALL, a quem mais tarde, como diretor da ANTT, Figueiredo deveria fiscalizar e multar. Essas tarefas, segundo a comissão especial dos Transportes, não foram feitas de maneira adequada. Tamanho seria o desrespeito às cláusulas contratuais que o governo, se quisesse, poderia até declarar a caducidade do contrato da ALL. Ou seja: tirar a concessão das mãos da empresa. O procurador diz que houve um claro conflito de interesses. “O fato de eu conhecer todas as etapas do processo só me qualifica”, afirma Figueiredo, que se vê no episódio como vítima de injustiças.
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