‘Cemitério logístico’ trava investimentos em setor ferroviário

O governo anunciou planos de construir 11 mil quilômetros de novas ferrovias e erguer mais de 800 aeroportos regionais, mas há anos não consegue executar uma tarefa básica: limpar os trilhos e os aeroportos que já existem.


Em dezenas de pátios logísticos espalhados País afora, milhares de vagões e locomotivas ainda enferrujam a céu aberto, transformados em abrigo para usuários de drogas e entrave na operação diária de concessionárias que assumiram a malha ferroviária nacional, privatizada na década de 90.


Nos aeroportos, onde o pouco espaço disponível é disputado a tapa pelas companhias aéreas, dezenas de aviões e carcaças abandonadas ainda são um estorvo sem data para acabar.
Resultado da burocracia jurídica e da dificuldade do governo em concluir programas criados para desobstruir o caminho do transporte de cargas e passageiros, esses cemitérios logísticos estão escancarados em trechos como os da ferrovia Malha Paulista, que foram percorridos pelo Estado.


Ao longo da estrada de ferro que corta a região de Sorocaba (SP), linha que hoje é operada pela América Latina Logística (ALL), a reportagem flagrou centenas de vagões abandonados, estações históricas caindo aos pedaços e trânsito livre para o comércio de drogas.


Cabe ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) dar um destino aos bens da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) que não foram repassados às atuais concessionárias.


No processo de privatização, realizado 18 anos atrás, todo o patrimônio da RFFSA considerado necessário à operação (malha ferroviária, vagões, locomotivas, equipamentos e oficinas) foi arrendado às empresas.


Ficou a cargo do Dnit cuidar dos bens considerados não operacionais e obsoletos, milhares de vagões e locomotivas antigas sem condições econômicas de recuperação. A autarquia do Ministério dos Transportes chegou a criar um programa para isso, mas simplesmente não consegue tirá-lo do lugar.


Sem interesse. Em 2012, o Dnit concluiu uma primeira etapa de inventário dos vagões, com 1.175 unidades fichadas individualmente. Dessas, 600 foram avaliadas para venda em leilão, incluindo grandes volumes que estão entulhados nos pátios de Triagem Paulista, em Bauru (SP), e de Samaritá, na cidade de São Vicente, litoral paulista. Uma licitação para venda dos vagões foi realizada dois anos atrás, mas o Dnit afirma que não teve interessado. Eram aproximadamente 400 vagões.


“Abrimos leilão em setembro deste ano para Triagem Paulista e Samaritá, mas não houve interessado, ou seja, o preço oferecido pelo Dnit estava fora do mercado”, declarou a autarquia, por meio de nota.


Nas contas da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), que representa as concessionárias, um total de 5.400 vagões e locomotivas não foi arrendado no processo de privatização e, portanto, trata-se de material que precisa ser removido. Outras 7.400 unidades entraram nos pacotes de concessão, mas já estão em fase de devolução, por conta do fim de vida útil.


Nas contas do Dnit, ainda é preciso concluir a avaliação dos maquinários abandonados nos pátios de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e em capitais do Nordeste, como Fortaleza, que concentra grande quantidade das sucatas.


O material que será vendido por meio de leilões passará por avaliação de uma comissão de peritos da “inventariança da extinta RFFSA”, processo que teve início em 2007 e que deveria ser concluído em 2015, mas que provavelmente terá de ser prorrogado. “Precisa ser concluído o inventário de torres de eletrificação elétrica em São Paulo, e depois transferir para Dnit”, informou o órgão.


Legado. No processo de liquidação dos bens da RFFSA, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) assumiu o compromisso de desembaraçar mais de 52 mil imóveis que pertenciam à antiga Rede. Bens de valor cultural ficaram aos cuidados do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), enquanto a Advocacia-Geral da União (AGU) assumiu aproximadamente 40 mil processos trabalhistas.


Ao mostrar para a reportagem a situação atual em que se encontra a estação ferroviária de Iperó, o funcionário aposentado pela Ferrovia Paulista (Fepasa) Dejair de Almeida faz as promessas oficiais parecerem folclore. “Veja a que situação chegamos. Estamos sozinhos aqui. Até os prédios que pertenciam à Fepasa foram invadidos. Ninguém fiscaliza nada. É lamentável ver o que fizeram com a ferrovia.”


Dejair Almeida trabalhou durante 22 anos na malha da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (ESF). Aposentou-se quando um acidente o deixou cego do olho direito, enquanto trabalhava nas instalações elétricas da estação ferroviária da cidade. Hoje, cuida do Sindicato dos Ferroviários de Iperó. Durante a reportagem, enquanto apresentava o que restou da estação ferroviária, foi obrigado a recuar. Atrás do prédio, a polícia abordava um grupo de jovens, em busca de drogas.


‘Dá dó na gente ver tudo isso; não entendo o que acontece’


Nasci e vivi quase toda a minha vida em São Roque (SP). Comecei na ferrovia com 23 anos, no cargo de trabalhador. Era desse jeito que chamavam o ajudante-geral, um faz-tudo que cuidava do trabalho pesado, na linha do trem. Era o cargo mais baixo da ferrovia. E eu amava aquilo.


Sempre gostei da ferrovia, desde menino. Entrei na Estrada de Ferro Sorocabana em 1958. Saí dela no dia 1.º de dezembro de 1987. Foram quase 30 anos de trabalho na ferrovia. Nesses anos, passei por todas as estações. Eram 800 quilômetros de linha. A gente ia até Presidente Epitácio, passava por Iperó, Sorocaba, Mairinque e São Roque. Seguia até a Estação Júlio Prestes. Era uma coisa linda. Fico lembrando, todos os dias. É muita coisa para lembrar. Não entendo por que acabou.


Virei um especialista em eletricidade, cuidava da rede elétrica dos trens. Fui parar na estação Júlio Prestes, em São Paulo. Trabalhei lá por oito anos. Cuidava de todo tipo de trem. Tinha carro de passageiro, de carga, superluxo, restaurante, carro dormitório e até carro funerária.
Os trens viajavam cheios. A ferrovia era o futuro. Todo mundo queria trabalhar nela. Mas era difícil entrar. Tinha de fazer exame, processo seletivo. As pessoas faziam uma fila enorme para fazer a inscrição.


Muita gente nem conseguia preencher a ficha e tinha de voltar no outro dia.


Lembro da estação de Mairinque. Ela era linda. Você já passou por lá? Hoje não tem mais nada, tudo abandonado, uma coisa feia. Dá dó na gente ver tudo isso que aconteceu. Não entendo por que fizeram isso. Como é que acabam com uma coisa dessas? A gente ouve, às vezes, que a ferrovia não serve mais pra nada, que não é rápida, essas coisas. Então eu lembro quando o trem chegava em Presidente Epitácio. As pessoas desciam as mercadorias das barcas que paravam no Rio Paraná, pra colocar as coisas no trem e seguir viagem. A ferrovia funcionava, e muito bem. Pois é.


Hoje, a gente fica atolado no trânsito, dentro de carro. Uma viagem de Sorocaba até São Paulo demora até três horas. O trem fazia essa viagem em uma hora. Não faz sentido uma coisa dessas. Hoje as cidades cresceram. Muito mais gente precisa do trem. Por que ele não volta? É uma pena. Tinha de voltar tudo.


Estrada de ferro Sorocabana passou por várias mãos


À primeira vista, a fachada imponente da estação da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), em Sorocaba, sugere que o prédio está bem conservado.


Erguida em estilo inglês, a estação recebeu seu primeiro trem nos idos de 1875. Basta se aproximar um pouco, porém, para perceber o estado de abandono em que se encontra a estação. As paredes estão apodrecendo. Na área interna, onde funcionava o embarque e desembarque de passageiros, telhas estão despencando. Para evitar acidentes, o centro de informações turísticas, que funciona numa das poucas salas preservadas do prédio, decidiu limitar o acesso de excursões escolares.


Toda a área da estação, teoricamente, está fechada para a circulação pública. A reportagem, no entanto, flagrou pessoas circulando pela estação e pelas dezenas de vagões apodrecidos. O consumo de crack corre solto, à luz do dia. Apesar de o entorno da estação ser fechado por alambrados, alguns trechos da proteção foram abertos.


Construída 140 anos atrás, a Sorocabana foi fundada por fazendeiros da região de Itu e empreendedores de Sorocaba. A ferrovia foi implementada para escoar algodão, mas logo passaria a ser usada para o transporte de café.


História. Inicialmente, tinha 120 km de extensão, entre São Paulo e Ipanema, passando por Sorocaba. Depois, incorporaria a malha da Companhia Ituana de Estradas de Ferro, chegando a 820 km de trilhos. Não faltaram donos para a Sorocabana, que trocou de mãos diversas vezes, passando por empresários, governo de São Paulo e União.


Em 1971, a EFS fez parte do bloco de ferrovias que seria incorporado pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA), antiga Fepasa. Seguiria dessa forma até 1994, quando foi incorporada pela CPTM. Cinco anos depois, em janeiro de 1999, passou para as mãos da concessionária Ferroban. Hoje, a malha é operada pela América Latina Logística (ALL).


Questionada sobre os problemas, a ALL informou que, ao longo do ano, removeu cerca de mil vagões obsoletos. Material que, segundo a empresa, estava devidamente guardado em pátios operacionais da companhia. “A concessionária, atendendo rigorosamente aos contratos de concessão e arrendamento, vem adotando regularmente medidas de destinação de ativos inservíveis para casos em que não exista possibilidade de manutenção.”


Espera. Sobre o amontoado de vagões e locomotivas sem uso, a concessionária esclareceu que “os vagões que aguardam recuperação, manutenção ou baixa definitiva estão estacionados nos pátios ferroviários ao longo na malha férrea.


A respeito da demora na solução dos problemas, a companhia ressaltou que “todo processo de baixa de ativos necessita ser conduzido pela agência reguladora (ANTT)”.


Quanto à circulação de usuários de drogas, a empresa informou que mantém “segurança regular em toda a extensão da malha férrea”.


Inventário da RFFSA só deve acabar em 2015


O processo de inventário da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) está previsto para acabar daqui um mês. O prazo original era dezembro de 2013, mas foi prorrogado pelo Ministério dos Transportes por mais dois anos, dado o volume de trabalho e processos que parece não ter fim.


Tudo indica que, mais uma vez, o prazo será estendido. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a Inventariança da RFFSA informou que a nova expectativa de encerramento do inventário é dezembro de 2015.


Todo o patrimônio da Rede que não foi repassado para as concessionárias de ferrovias voltou para as mãos da União. Para se ter uma ideia, a quantidade de imóveis devolvidos ao governo chega a 49.533 unidades, sendo 24.010 terrenos e 25.523 prédios.


Em muitos desses prédios vivem ex-funcionários da própria empresa, mas muitos estão em estado de abandono ou foram simplesmente invadidos.


Pela Lei de Acesso, o Estado enviou uma série de perguntas ao Ministério dos Transportes, na tentativa de apurar qual seria, afinal de contas, o passivo total atualmente acumulado no processo de liquidação da RFFSA.


Os questionamentos foram replicados entre a Inventariança e a Advocacia-Geral da União. Uma resposta concreta, no entanto, não foi dada pelo governo.


O que se sabe é que milhares de processos trabalhistas se acumulam na AGU, formando um contencioso civil e trabalhista sem data para ser concluído.

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