Um pé de piquiá define os limites entre as comunidades
quilombolas África e Laranjituba, localizadas no município de Abaetetuba (PA).
Lá, os caminhos são pavimentados pelo cacau caído no chão direto do pé, as
crianças correm livremente, os pássaros que se abrigam na floresta também
circulam pelas comunidades e as águas geladas e transparentes dos igarapés são
apreciadas pelos moradores da região. Esse cenário, entretanto, está situado no
trecho da Ferrovia Norte-Sul (FNS) que liga Açailândia (MA) a Barcarena (PA), e
corre o risco de desaparecer.
O empreendimento, que teve início na década de 1980 e tem a
ambição de ligar o Pará ao Rio Grande do Sul, é gerenciado pela Valec
Engenharia, Construções e Ferrovias S.A, empresa pública vinculada ao
Ministério dos Transportes, que também gerencia a exploração da infraestrutura
ferroviária.
Ela realizou um Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e
Ambiental (EVTEA) do traçado que ligará o Maranhão ao Pará e prevê uma malha
ferroviária de 477 quilômetros, que será usada para o escoamento da soja e do
minério produzido na região até o porto da Vila do Conde, em Barcarena (PA). Ao
observar o traçado indicado, nota-se que a Norte-Sul passará sobre terras de
comunidades quilombolas, indígenas e agricultores rurais.
Os moradores das comunidades estão apreensivos com as
consequências da obra. “Se alguém fala: ‘olha já liberaram o recurso pra construção’,
ou alguém do Moju liga: ‘olha tão contratando gente pra abrir a ferrovia’, a
gente nem consegue dormir”, afirma Luís Augusto, presidente da Associação
Quilombola África e Laranjituba.
Ele visitou o território quilombola Santa Rosa dos Pretos, localizado
em Itapecuru Mirim (MA), e conheceu de perto os impactos causados por uma
ferrovia da Vale S.A, que corta o território. Ele relata que ouviu depoimentos
que o deixaram impressionado.
“Eles viviam como a gente, mas, depois que chegou a
ferrovia, isso mudou. Acabaram os igarapés, os peixes, a mata, o sossego. E a
gente tem uma preocupação grande com um castanhal que preservamos há muito
tempo, do qual muitas famílias sobrevivem”, afirma Augusto.
Nas duas comunidades quilombolas, a principal atividade
econômica é o agroextrativismo, aliança entre agricultura familiar, cultivo de
árvores frutíferas, pesca, coleta de sementes e frutos (como a castanha do Pará
e o açaí). Alguns moradores produzem farinha de mandioca e panelas de barro, e,
nos quintais, a criação de pequenos animais soltos também incrementa a renda.
Nascido na comunidade, Augusto morou em Belém por três anos
para estudar, mas não se adaptou ao ritmo urbano e logo voltou para a
comunidade. Atualmente, ele produz farinha para o próprio consumo e vende açaí
por rasa, um cesto de palha confeccionado pelos próprios moradores que serve
como medida e equivale a duas latas de 14 quilos. Ele afirma que, em época de
boa colheita, consegue tirar R$ 2 mil por dia.
Principal corredor de
exportação
Com a expansão do agronegócio na Amazônia, o chamado Arco
Norte (que abrange Rondônia, Amazonas, Amapá, Pará e o Maranhão) se tornará a
principal via de escoamento para a exportação de grãos e minérios.
De acordo com o relatório de mercado da empresa, o principal
corredor de exportação brasileiro será o centro da região Norte-Nordeste, “mas
a capacidade de embarque de grãos em São Luís está estagnada em 2 milhões de
toneladas por ano há 18 anos, e a de Belém é zero”. Por isso, a expectativa é
que haja investimentos na região para superar essas limitações.
Guilherme Carvalho, coordenador da Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional (Fase) Programa Amazônia, explica que os
portos de Santos, em São Paulo, e o de Paranaguá, no Paraná, encontram-se congestionados
e longe dos principais estados de produção de grãos, tornando o preço do
produto nada atraente para o mercado externo. Neste cenário, a alternativa
encontrada foi a Amazônia.
“Transportar pela nossa região é muito mais barato porque
ela está mais perto da Europa, dos Estados Unidos e do canal do Panamá, que dá
acesso à China e Japão. É mais rápido e mais barato”.
O relatório da Valec produzido em 2012 aponta que,
atualmente, o Brasil é o segundo país que mais consegue suprir os mercados
internacionais de exportações do agronegócio, e estima que entre cinco e dez
anos consiga ultrapassar os EUA, pois já esgotaram “fronteira de produção”. A
Amazônia atualmente é considerada a última fronteira agrícola do Brasil.
Para atender ao mercado, um plano de transporte multimodal
que interliga diferentes meios como hidrovias, rodovias, ferrovias e portos vêm
ganhado força. O Plano Nacional de Logística e Transporte (PNLT), de 2009,
recomendou investimentos até 2023. A rede logística tem o objetivo de conectar
toda a Amazônia com os principais mercados consumidores, e a ferrovia Norte-
Sul faz parte do plano.
Em um tom alarmante, Carvalho informa que a região está
vivendo um processo de saque em grande escala dos recursos naturais, e que a
tendência é que aumentem os conflitos no baixo Tocantins no Pará, região
considerada estratégica por ser próximo ao Porto de Vila do Conde, em Barcarena
(PA).
Outro lado
A Valec foi procurada para confirmar se as comunidades
quilombolas seriam impactadas pela construção desse trecho da ferrovia
Norte-Sul, mas a empresa não comentou o assunto até a publicação desta
reportagem, uma semana após a solicitação.
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