Sete em cada dez grandes obras feitas com verbas federais
têm irregularidades graves. O Tribunal de Contas da União (TCU) encontrou
atrasos, editais direcionados, projetos com defeito, excesso de aditivos e
sobrepreço em 73,9% dos empreendimentos que fiscalizou nos últimos dez anos. O
TCU calcula que essas irregularidades somam R$ 20,1 bilhões entre multas que
devem ser pagas à União e ressarcimento por projetos que foram concluídos com
falhas. O valor leva em conta, também, a economia que o governo teria ao
corrigir os problemas nas obras que estão em andamento.
Os números são resultado de um levantamento feito pelo GLOBO
com base nos relatórios do Plano de Fiscalização Anual do TCU (Fiscobras) de
2007 a 2016. No período, a taxa de obras com problemas esteve sempre acima da
metade, numa mostra de que, apesar dos alertas recorrentes feitos pelo
tribunal, as mesmas irregularidades continuam sendo cometidas anos após ano.
Desde 2007, o tribunal analisou 1.725 obras públicas; em 1.275 delas havia
algum apontamento. Nos casos mais graves, o relatório recomenda o corte de
recursos públicos.
Os empreendimentos fiscalizados são escolhidos anualmente
pelos técnicos do TCU com base em critérios como tamanho do projeto, custo e
uma análise de risco calculada por um sistema informatizado. Ao final do
processo de análise das contas e visitas pessoais aos canteiros de obras, o TCU
apresenta um relatório ao Congresso indicando os projetos que devem ter o
repasse de verbas bloqueado no orçamento do ano seguinte. No último dia 8, o
plenário do tribunal aprovou o relatório Fiscobras 2016, recomendando a
paralisação de dez projetos.
Mesmo após a recomendação do TCU, cabe aos parlamentares
decidirem se a obra fica ou não fora do orçamento. Audiências públicas sobre o
Fiscobras estão marcadas para esta semana no Congresso. A maior parte das
irregularidades, no entanto, não demanda a paralisação dos trabalhos.
— A obra pode continuar desde que o gestor corrija os erros
apontados. Se isso acontecer não haverá risco ao erário. Além disso, o gestor
tem tempo para responder às acusações — diz o coordenador-geral de controle
externo da área de infraestrutura do TCU, Arsenio Dantas.
SOBREPREÇO DE R$ 119 MILHÕES
Um dos projetos que aparecem na lista de paralisação do
Fiscobras 2016 é a Vila Olímpica de Parnaíba, no interior do Piauí. Orçada em
R$ 200 milhões, a intervenção está na lista de obras bloqueadas desde 2013. O
complexo esportivo foi projetado para ter piscinas, quadras, pistas de corrida,
ginásio e um estádio de futebol para 50 mil torcedores. Em 2012, a ideia era
que a estrutura servisse para preparar atletas para a Copa do Mundo de 2014 e a
Olimpíada do Rio. Técnicos do tribunal questionaram a falta de estudos de
viabilidade que justificassem a construção de um estádio de dimensões tão
grandes numa cidade com 137 mil habitantes.
Em abril, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), se
reuniu com o TCU e apresentou a proposta de redução da arena, que passaria a
ter arquibancadas para 15 mil pessoas. Segundo o governo do estado, os apontamentos
feitos pelo TCU foram corrigidos, e o projeto aguarda aprovação do orçamento na
Caixa Econômica Federal.
Outra obra do Nordeste na mira do tribunal é o Canal do
Sertão, promessa antiga de levar água do Rio São Francisco para o interior de
Alagoas por meio de um canal artificial de 250 quilômetros. O custo total da
obra, dividida em cinco trechos, é de R$ 2,3 bilhões, segundo o governo
federal. Numa fiscalização recente, técnicos encontraram sobrepreço de cerca de
R$ 119 milhões no projeto. As empreiteiras estariam cobrando valores mais altos
do que a média praticada pelo mercado no resto do país por itens como concreto,
brita, mão de obra e transporte. A análise das contas também encontrou um
aditivo que aumentou em mais de 25% o valor do contrato para construção do
trecho 3, o que é proibido pela Lei de Licitações.
As três primeiras partes do canal já estão prontas, mas,
como ainda há pagamentos pedentes, os recursos podem ser bloqueados no
orçamento. Uma das exigências feitas pelo TCU às empreiteiras que participaram
dos serviços é a contratação de um seguro que garanta a devolução de dinheiro
ao governo federal em caso de condenação pelo sobrepreço.
O quarto trecho da obra deve ser entregue em maio de 2018. O
trecho 5, que já tem empreiteiras contratadas, também foi alvo de fiscalização.
A Secretaria da Infraestrutura de Alagoas informou que “apresentou uma proposta
de repactuação da obra, com o objetivo de reduzir os valores iniciais”. O
documento está sendo analisado pelo TCU. Em julho, o ministro da Integração
Nacional, Helder Barbalho, visitou o estado para anunciar essa quinta fase.
Restrição de competitividade no edital e falhas no
anteprojeto de engenharia e nos estudos de viabilidade técnica, econômica e
ambiental foram os motivos alegados pelo TCU para barrar a construção de um
corredor exclusivo de ônibus que já contava com um convênio de R$ 227 milhões
em Palmas, no Tocantins. A prefeitura do município informou que esclareceu ao
órgão de controle o “custo-benefício da obra e seu impacto favorável às
soluções de mobilidade urbana”.
RESCISÃO DE CONTRATO
Os fiscais também encontraram irregularidades que justificam
paralisações em construções de hospitais, duplicação de estradas e numa reforma
do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, devido a atraso e
substituição de empresa contratada. Neste caso, diz a Infraero, o acordo está
sendo rescindido atendendo a outra recomendação do TCU, em função do plano de
concessão do aeroporto.
O professor de Administração Pública da Universidade de
Brasília (UnB) José Matias-Pereira vê com preocupação o alto número de
irregularidades. Somado a um cenário em que estão sendo revelados escândalos de
desvio de dinheiro em grandes obras de infraestrutura, isso pode dar sinais de
outros casos de corrupção.
— O problema é que, depois do trabalho técnico, há uma
avaliação política. E o máximo que se acaba alcançando com esses relatórios é
mostrar para a opinião pública que as coisas não estão boas. Parece-me que os
governos nem sempre levam isso em conta — avalia Matias-Pereira. — Um dos
grandes problemas do nosso modelo é que se deixa um poder muito grande na mão
de um só dirigente. Ele pode sozinho contratar bilhões, aditar contrato,
rescindir. Não precisa ser assim.
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