O governo poderá receber de volta apenas 16% de todos os
recursos aplicados desde 2005 na construção do trecho de 1.537 quilômetros da
Ferrovia Norte-Sul que será concedido à iniciativa privada. A concessão, que
terá suas minutas de edital e de contrato divulgadas hoje pela Agência Nacional
de Transportes Terrestres (ANTT), vai para audiência pública com um valor
mínimo de outorga de R$ 1,679 bilhão – acima da estimativa anunciada duas semanas
atrás.
Isso representa, no entanto, só uma fração do investimento
feito com recursos orçamentários ao longo dos últimos 13 anos. Com um histórico
de desmandos e superfaturamento, além de um ex-dirigente da estatal Valec
condenado por corrupção, a ferrovia entre os municípios de Porto Nacional (TO)
e Estrela D’Oeste (SP) ficará pronta ao custo total de R$ 10,1 bilhões para os
cofres públicos. Em outras palavras: 84% de tudo o que foi gasto acabará sendo,
na prática, a fundo perdido.
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Além das minutas, a ANTT soltará hoje um documento
fundamental: os termos de aditivos contratuais nas concessões existentes de
ferrovias que vão receber os trens oriundos da Norte-Sul para dar acesso aos
portos de Itaqui (MA) e de Santos (SP). Esses termos vão regulamentar o que o
mercado chama de direito de passagem, ou seja, as regras para o tráfego das
composições em malhas de outra propriedade.
A construção da Norte-Sul foi retomada no governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ganhou impulso na gestão de Dilma
Rousseff. Só a parte norte da ferrovia, entre Açailândia (MA) e Palmas (TO),
tem operações regulares – ela é administrada pela VLI. O trecho central foi
inaugurado por Dilma em 2014 e a extensão sul tem 91,8% de avanço físico.
Esses dois últimos trechos serão privatizados em fevereiro
de 2018. Há quatro grupos interessados: a própria VLI, a MRS e a gigante
asiática China Communications Construction Company (CCCC). Na semana passada,
em Moscou, os russos da estatal RZD confirmaram ao presidente Michel Temer seus
planos de entrar na disputa.
O Valor obteve, com a Valec, informações detalhadas sobre as
obras no trecho mais recente da ferrovia: a extensão sul, entre Ouro Verde (GO)
e Estrela D’Oeste (SP). Esse projeto foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) com custo estimado de R$ 2,7 bilhões. A promessa era entregar tudo no fim
de 2012.
O valor final dessa obra aumentou para R$ 5,5 bilhões,
quando se incluem os recursos dispendidos na aquisição de trilhos e com
desapropriações, e o prazo de conclusão ficou para fevereiro ou março de 2018 –
semanas antes da assinatura do futuro contrato de concessão.
Houve nada menos que 61 aditivos contratuais no meio do
caminho. Parte deles altera o prazo de execução das obras; outra parte tem
reflexo financeiro no valor dos contratos. Uma série de fatores colaborou para
o atraso na construção: perda de ritmo na liberação de recursos orçamentários,
revisão dos projetos executivos de obras de arte especiais (pontes e viadutos),
problemas com licenciamento ambiental e desapropriações, interrupções em
serviços de terraplenagem, necessidade de sondagens complementares, vaivém no
pregão para o fornecimento de trilhos.
“Ainda que a participação estatal seja necessária para
expandir a malha ferroviária, o modelo de execução direta [da obra] não tem se
mostrado o mais eficiente”, afirma o especialista em infraestrutura
Leonardo Coelho, sócio do LL Advogados, que lança em outubro um livro sobre
regulação de ferrovias junto com o economista Armando Castelar.
Coelho cita parcerias público-privadas (PPPs) ou projetos
com financiamento subsidiado como eventuais alternativas. No caso da Norte-Sul,
ele acredita que o atraso em tirar a ferrovia do papel ajudou no aumento do
custo de construção. O advogado lembra, no entanto, que há ainda investimentos
relevantes a fazer em material rodante (locomotivas e vagões) e sistemas de
comunicação. Por isso, elogia a iniciativa de conceder de uma vez a operação do
empreendimento. “Se não, a conta continua subindo.”
Para o engenheiro José Eduardo Castello Branco,
ex-presidente da Valec entre 2011 e 2012, não é correto avaliar como alto ou
baixo o valor mínimo de outorga (R$ 1,6 bilhão) tendo como base os aportes
totais na construção (R$ 10,1 bilhões). “Um empreendimento vale o que ele
tem capacidade de gerar, como fluxo de caixa, daqui para frente”, afirma.
Segundo ele, as críticas ao preço mínimo definido para a privatização da
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), no governo do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, partiam da mesma premissa equivocada.
Por outro lado, comenta, isso comprova que não há forma de
ampliar a rede de ferrovias sem recursos públicos. A única exceção são linhas
que conectam jazidas a portos, como a Estrada de Ferro Carajás, mas porque é a
venda do minério que viabiliza o negócio – não a operação dos trilhos em si.
“Uma ferrovia dificilmente se viabiliza por si própria, só com o volume de
fretes.”
No caso da Norte-Sul, ele avalia que “o traçado atual
ladeia, mas não chega ao coração da produção agrícola” do país. O plano
original era que nela desembocassem a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste
(Fico) e a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fico).
Sem os dois projetos, há menos carga chegando ao trecho que
será privatizado em 2018. Isso acaba reduzindo o potencial de geração de
receitas e, por consequência, o valor mínimo de outorga.
Castello Branco chegou ao comando da Valec em meio à
“faxina” promovida por Dilma, no primeiro ano de seu governo, quando
demitiu vários auxiliares investigados por corrupção. Um deles era José
Francisco das Neves, o Juquinha, hoje condenado pelos crimes de cartel, fraudes
em licitações, peculato e corrupção nas obras de construção da Norte-Sul.
Juquinha está preso.
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