Desbravando a Suíça pelos trilhos

Toda vez que
se fala numa viagem para a Suíça voltam nomes de cidades como Zurique, Genebra,
e das paisagens serenas deste país. Alguém pode acrescentar Lausanne, Berna e
Davos, pois elas atraem turistas do mundo inteiro atrás de seus museus,
galerias de arte, spas, shopping e gastronomia.

Há, porém,
outro prazer confidencial: fugir dos circuitos assinalados e encontrar lugares
mais discretos, com beleza e história ainda não massificadas pelo turismo. É
bem mais difícil reconhecer aí nomes como Chur, Scuol e Kleine-Sheidegg.
Afinal, viajar não é ser livre para escolher entre tantas alternativas?

Raros paises
conseguem cumprir nossas expectativas quanto a exercer total liberdade de
locomoção entre uma cidade e outra, como na Suíça graças ao trem e seu desafio
de ser sofisticadamente simples. E, por que não dizer que também é um luxo
viajar dessa maneira? De acordo com o sociólogo italiano Domenico de Masi, os
novos privilégios do luxo não estão mais na raridade, mas nos quesitos como,
tempo, autonomia, espaço, tranqüilidade, segurança e beleza. Itens que estão
presentes nessas viagens de trem.

De vagões
decorados como uma casa alpina, passando por vagões conversíveis, panorâmicos
ou com design de vanguarda, aos que ostentam placas onde se deve permanecer de
bico calado, nada de burburinho, e até mesmo com a proibição do uso de laptops.
Para saudosistas ainda existem linhas turísticas com maria fumaça, bafo de ar
quente, fuligem nos olhos e apitos que mais parecem barridos de elefantes em
disparada. Em todos eles o denominador comum é a pontualidade.

A primeira parte
da minha viagem à Suíça dá a senha de situação que se repetirá todo o tempo, e
me lembra em tudo o oposto do filme “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis
Buñel. Para quem não se lembra, no roteiro, uma seqüência de enganos e
mal-entendidos vão acontecendo, e onde tudo parecia dar certo, terminava
errado. Pode falar o diabo, mas na Suíça nada sai dos trilhos.

“Seu avião
está programado para chegar às 11h05. Pegue o trem que liga o aeroporto a
Estação Central de Zurique, às 11h45. De lá tome o Expresso para Chur às 12h37.
Estarei te esperando na estação às 13h52”. As dicas me foram enviadas pela
historiadora Thesi Ling que iria me ciceronear durante estada naquela cidade.

Pensei: é
brincadeira. Como vou chegar nesse exato horário depois de 11 horas de viagem
aérea, passar pela alfândega, pegar as malas, encontrar o balcão ferroviário
para retirar meu swiss card (passe ferroviário), e ainda fazer as baldeações
indicadas? Ela vai esperar muito tempo! Mas não é que tudo deu certo e ainda
com folga para tomar um cafezinho? Difícil acreditar para um paulistano.

Tinha
escolhido a cidadela medieval de Chur (pronuncia-se Rhur) a leste do país, como
minha primeira parada no país de Guilherme Tell. Além de ser a mais antiga
cidade da Suíça, ali se fala o romanche, o quarto idioma oficial da nação. Ele
se deriva do latim, e quase compreendi tudo. Os tradicionais cumprimentos se
resumem ao ‘bundi’, bainvgnü e ‘allegra’, respectivamente, bom dia, bem-vindo e
olá. Ou ainda frases como: ‘che bel cha tu est’!’, que bela você é; ‘aua
minerale’, água mineral; e outras bem semelhantes ao nosso idioma.

Chur
significa em romanche –coração. Coração porque, localizada em um vale cortado
pelo Rio Prazer e abrigado pelo maciço montanhoso da Calandra, nela se cruzavam
os caminhos dos romanos, dos celtas e de povos do norte. Um fosso acompanhava a
murada de pedra e pontes elevadiças davam acesso às enormes portas da vila. Seu
centro histórico preserva ruas estreitas e sinuosas que terminam sempre em
simpáticas pracinhas com uma fonte ou estátua de um cavaleiro carrancudo no
centro, rodeadas por cafés e lojas chiques. Muitas das construções ainda
guardam desenhos em sua fachada que indicavam a profissão do proprietário: o
açougueiro, o mercador de tecidos, o guarda-noturno, o ferreiro, …

Procurando
por uma visão mais ampla, subi uma das montanhas que circunda a vila em moderno
bondinho do teleférico. Um passeio que, ao amanhecer, também se alia à
atividades físicas de muitos de seus habitantes. Do alto pode-se descer por
trilhas as encostas praticando jogging ou biking e apreciando o rio de águas
prateadas, a floresta e a vila.

O símbolo de
Chur é o steinbock, um robusto carneiro com pêlo cor de avelã. Ele estampa o
brasão, a bandeira, de camisetas a canecas e de queijos aromáticos de sabor
pungente a delicadas tortas de chocolate. Embora querido, um contra-senso que
não consegui entender: quando lá estive, no verão, estava aberta a temporada de
caça a esse animal.

Chur também
serve de ponto de partida da estrada de ferro transnacional Albula-Bernina que
é percorrida pelas duas principais linhas panorâmicas do país, e incluídas na
Lista do Patrimônio da Humanidade, pela Unesco: o Glacier Express que liga
Zermatt a Davos ou St. Moritz, e a linha Bernina Express que parte de Thusis
até Tirano. Elas foram inscritas por estarem em perfeita harmonia com a
natureza que atravessam. As obras de engenharia que há um século desafiaram
montanhas e desfiladeiros se estendem por viadutos e túneis e parecem estar ali
apenas para embelezar a paisagem.

A pouco mais
de meia hora de Chur, por trem, uma cidadezinha, Scuol, de supremo encanto.
Ali, quase na fronteira com Itália e Áustria a torre pontuda e alta de sua
igreja se ergue como se fosse uma seta para indicar o povoado escondido na
floresta. Os suíços a elegeram como um dos melhores lugares do país para spas e
banhos medicinais, pois reúne 21 fontes de águas minerais com propriedades
químicas diferentes, A vila também é porta de entrada para o único Parque
Nacional Suíço. Mas, não foram essas atrações que me levaram àquela cidade, e
sim as janelas de suas casas.

Conhecidas
como “Janelas de Engadine”, devido a região suíça onde se encontram, elas se
distanciam de qualquer outra por sua construção, originalidade nos desenhos e
cores. Para o arquiteto suíço Peter Langenegger as janelas são um “exercício de
criatividade”. Especializado nesse assunto, ele me acompanhou o tempo todo
durante a visita a essa aldeia. “Há mais de 400 anos um imigrante italiano
construiu sua casa na região com aquele tipo de janela. Outros habitantes
adoraram a idéia e também embelezaram suas casas utilizando variações daqueles
desenhos”, disse Peter. Mas a influência foi mais longe, pois Charles-Edouard
Jeanneret, conhecido como Le Corbusier, famoso arquiteto suíço, notabilizou
alguns de seus projetos com novas releituras da janela de engadine.

Um país em
férias! Foi o que senti quando cheguei na estação ferroviária do vilarejo de
Kleine-Sheidegg, quase no centro do país, depois de baldeação em Interlaken.
Uma multidão de suíços, de todas as faixas etárias, com mochilas, bicicletas,
patins, ou bastões para caminhadas, se preparavam para descer ou subir as
trilhas que sulcam os Alpes.

Trem que
leva até o topo da Jungfraujoch, considerada o topo da Europa, na região suíça
de Interlaken

A visão da
paisagem é arrebatadora. Tinha tal riqueza de imagens que em certo ponto o
difícil é saber o que olhar. Ao fundo, o Jungfrau, uma das montanhas mais altas
da Europa e seus cumes nevados. A vista percorre vales, campos, florestas e
pequenas vilas incrustadas na cadeia montanhosa.

A luz ainda
dourada do amanhecer e o ar puro nos pulmões inspiravam para uma caminhada, mas
meu foco era outro: a partir desse povoado queria chegar ao ponto mais alto da
Europa por meio de linha férrea construída no início do século passado.
Utilizando cremalheiras, pontes e atravessando túneis em geleiras, ela alcança
o topo em pouco mais de uma hora.

Lá de cima,
os Alpes! Um poderoso arco de montanhas que se estende de Marselha até Viena.
Ali, sob o céu ultramarino, observei o glacial Aletsch, e sua língua de gelo de
22 quilômetros de comprimento. Foi repousante para os olhos e para o espírito.
Do alto, pássaros em voos livres e em algaravia me vigiavam. Naquela visão
impactante descobri porque os pássaros cantam.

Dica: você
pode fazer seu check in aéreo (com antecedência de oito horas) na maioria das
estações férreas da Suíça.

 

– Fonte: https://catracalivre.com.br/viagem-livre/suica-viagem-trem/


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