A caducidade representa um caminho drástico no curso natural de uma concessão pública. Ela revela, por um lado, a incapacidade institucional do poder público na elaboração de projetos sólidos e, por outro, a inaptidão da iniciativa privada para execução contratual, a qual pode derivar da falha de estruturação do projeto.
O resultado é a frustração mútua e a deterioração do interesse público em prejuízo dos próprios usuários de serviços públicos. Não à toa, a caducidade deve ser enxergada como solução de última instância e para casos excepcionais.
A relicitação pode e deve ser considerada uma ferramenta estratégica para projetos de infraestrutura
Com o objetivo de evitar os efeitos drásticos da caducidade para os usuários dos serviços públicos e iniciativa privada, simultaneamente, a Lei Federal 13.448/2017, regulamentada pelo Decreto Federal 9.957/2019, concebeu a figura da relicitação como espécie de solução amigável e consensual para se evitar o pior cenário.
Nessa linha, a relicitação seria válvula de escape para projetos que foram acometidos por uma série de problemas de natureza ordinária, como falhas de planejamento, financiamento e execução da concessão; e extraordinária, como magnitude de deterioração da conjuntura macroeconômica, recuperação judicial e drenagem de crédito.
Com a edição do Decreto 9.857/2019, um dos principais pontos de controvérsia que consiste na determinação dos valores de indenização pelas parcelas não amortizadas/depreciadas dos bens reversíveis, parece ter sido equacionado, ainda que para a definição posterior das respectivas agências reguladoras.
Apesar disso, ainda subsistem algumas lacunas relevantes no processo de relicitação acompanhado de caducidade.
O primeiro ponto que chama atenção diz respeito à renúncia do prazo para a correção de falhas na execução contratual, conhecido como prazo de cura (art. 38, § 3º, da Lei Federal 8.987/1995), que deveria ser feito logo no requerimento de adesão à relicitação (art. 14, § 2º, II da Lei c/c art. 3, IV, do Decreto 9957/2-19).
O problema é que o sobrestamento da caducidade e a visibilidade sobre a efetiva intenção de se relicitar o projeto ocorrem somente quando da sua qualificação no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), o que pressupõe a consecução de etapas anteriores (análise da agência reguladora, análise do Ministério competente, e análise do próprio PPI).
Nesse sentido, haveria renúncia de uma relevante prerrogativa por parte das concessionárias sem adequado grau de certeza de que o processo de relicitação seria levado adiante e em quanto tempo, o que demandaria uma previsibilidade sobre a capacidade financeira e operacional da concessionária em suportar a continuidade das atividades neste interregno.
O segundo ponto diz respeito ao descolamento entre a manutenção das atuais condições de execução contratual, representadas pelas obrigações originais de obras, melhorias e parâmetros de desempenho, e a fixação das condições operacionais mínimas em razão da suspensão de obrigações de investimento vincendas, o que ocorre somente quando da celebração do termo aditivo (art. 15, II, da Lei c/c art. 6º, VI, ‘a’ e ‘b’ do Decreto).
Conforme a estrutura procedimental estabelecida no Decreto 9.957/2019, o aditamento somente seria celebrado após a qualificação do projeto concessório no PPI. Assim, as concessionárias inexoravelmente ficariam expostas às condições adversas que ensejaram o pedido de relicitação e ao acúmulo de multas pelo descumprimento das obrigações derivadas da execução contratual, as quais, pelo estado precário dos projetos submetidos ao processo de relicitação, tendem a ser descumpridas de forma sistemática.
O terceiro ponto discorre sobre a própria definição das condições operacionais mínimas. Sem uma adequada calibragem das condições operacionais entre concessionárias e administração pública durante o período, eventual descompasso poderá ou inviabilizar a continuidade do serviço público ou sucatear a prestação do serviço em desfavor dos usuários. Em outras palavras, a fixação de parâmetros mínimos de operação cujo atendimento se revele inviável para a concessionária, poderá comprometer a execução contratual como um todo e até mesmo colocar em xeque o processo de relicitação. Por outro lado, a fixação de parâmetros muito aquém dos originais representaria o sucateamento da adequação do serviço.
O quarto ponto demonstra a ausência de previsão, pela minuta de resolução da Agência Nacional de Transportes Terrestres submetida à Audiência Pública 14/2019, de prorrogação do prazo de suspensão do processo de caducidade por 24 meses, enquanto se examina o pedido de relicitação. Em virtude do número de atores envolvidos (Agência Reguladora, PPI, Ministério de Infraestrutura, Presidência da República e TCU), a possibilidade de prorrogação no plano infralegal revela-se importante para garantir coerência com a possibilidade de prorrogação estipulada na Lei Federal 13.448/2017 (art. 20, § 2º).
Por fim, ainda persiste a incerteza sobre se o levantamento do sobrestamento implicaria a desconsideração dos parâmetros operacionais mínimos estipulados para fins de aplicação de multas.
A relicitação pode e deve ser considerada uma ferramenta estratégica para projetos de infraestrutura relevantes, como nos casos da BR-040 e o aeroporto de Viracopos. Porém, é fundamental que haja um mínimo de viabilidade e segurança para as concessionárias e investidores.
Thiago Luís Sombra e Raul Dias dos Santos Neto são, respectivamente, sócio de Direito Público Empresarial do escritório Mattos Filho, ex-procurador do Estado de São Paulo e doutor em Direito pela Universidade de Brasilia-UnB; advogado de Direito Público Empresarial do escritório da mesma banca, mestrando em Direito Público pela FGV-SP.
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