Em um momento extremamente crítico e sem precedentes para quase todas as gerações, a única certeza é a incerteza. Ainda não se tem proporção do quão afetada será a nossa economia e quantos desempregados estarão nas ruas quando a tempestade passar. No entanto, temos a obrigação de remediar situações que hoje estão nitidamente desestruturadas e constituem elemento essencial para o funcionamento da vida em sociedade.
Alguns setores da economia diretamente impactados pela crise provocada pela pandemia do coronavírus são facilmente identificados pelo olhar comum. Caso das companhias aéreas, que já estão recebendo devida atenção do poder público para garantir que não haja colapso iminente, a exemplo a Medida Provisória 925, recentemente editada.
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Por outro lado, outros setores essenciais não possuem da sociedade a mesma percepção quanto ao risco da paralisação. Um deles é o transporte coletivo urbano, que está sendo profundamente impactado por medidas irrefletidamente adotadas por alguns formuladores de políticas públicas.
A drástica redução de passageiros, ocasionada pelo isolamento de alguns grupos e a insegurança das políticas a serem formuladas, provoca impacto imediato de proporções catastróficas nas receitas das empresas de transporte, dependente primordialmente dos usuários pagantes. Isso seca o caixa – que já era escasso antes da pandemia – a níveis alarmantes. Soma-se a isso, algumas medidas emergenciais que tendem a agravar ainda mais a situação, provocando um verdadeiro risco de colapso estrutural do sistema.
O município do Rio de Janeiro, por exemplo, vive hoje situação bastante delicada, com uma redução linear de mais de 60% dos usuários pagantes. Os concessionários de transporte coletivo por ônibus da cidade já conviviam com extrema dificuldade financeira devida, principalmente, a três fatores.
O primeiro – que se prolonga há anos -, consiste na necessidade de uma revisão tarifária, também prevista no contrato de concessão, readequando-a à realidade do transporte no município, passada uma década de quando o cálculo atual foi estabelecido.
O segundo fator, agravando a situação do primeiro, está no crescimento do transporte clandestino, muitas vezes sob controle da milícia e do tráfico de drogas, o que contribui sensivelmente para a diminuição da receita dos concessionários de transporte por ônibus. Por não obedecerem a leis em vigor, não transportam gratuidades, concorrendo unicamente na fatia dos passageiros pagantes e em trechos mais rentáveis.
Por fim, e possivelmente o mais grave deles, decorre de uma decisão judicial proferida em caráter liminar em abril do ano passado, que determinou o “congelamento” da tarifa do transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Desde a decisão, o poder público encontra-se impedido de repassar até mesmo a recomposição inflacionária para a tarifa, descumprindo o contrato de concessão e onerando gravemente as empresas.
A situação já havia colocado os concessionários de transporte coletivo por ônibus do município do Rio em uma enorme fragilidade econômica, levando empresas tradicionais, algumas com mais de 50 anos de operação, a fecharem portas e outras a enfrentarem um doloroso processo de recuperação judicial. E, infelizmente, a pandemia pode acelerar a agonia do setor, principalmente, se medidas sérias e pensadas em conjunto com representantes do setor não forem adotadas pelo poder público.
Hoje, no Rio de Janeiro, todo o ônus no sistema de transporte decorrente da atual crise tem sido enfrentado unicamente pelas concessionárias, as quais dependem apenas dos passageiros pagantes, uma vez que não recebem recursos públicos.
Medidas como a determinação de circulação dos ônibus com apenas 50% da capacidade ou somente passageiros sentados, sem pensar no impacto irrecuperável na receita, desconsideram os custos do serviço de transporte coletivo e apenas contribuem para tornar o colapso do setor irreversível, independentemente dos esforços realizados pelas concessionárias.
Nesse contexto, o governo federal, no recente decreto 10.282, de 20 março de 2020, assegurou que as medidas para o combate à covid-19, previstas na Lei n. 13.979, “deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais”, conforme previsto Artigo 3º.
O mesmo artigo, reafirmando o texto constitucional, estabelece, no inciso V, o transporte como atividade essencial que deve ser preservada e protegida nesse momento de crise. É, portanto, dever do governo federal adotar medidas que preservem a viabilidade do transporte, tanto rodoviário interestadual, como do urbano e intermunicipal.
Não poderia ser diferente. Uma crise no transporte terá um efeito dominó, impedindo àqueles que necessitam se locomover, por exemplo funcionários da saúde e da segurança pública de chegarem ao seu destino, podendo paralisar hospitais e outros serviços essenciais.
Faz-se necessário, portanto, que a determinação federal seja obedecida e oriente as medidas a serem adotadas também pelos governos estaduais e municipais, que devem preservar a prestação dos serviços de transporte coletivo urbano e intermunicipal, até como forma de superar o momento de pandemia.
O primeiro passo consiste em trabalhar conjuntamente, setor público e privado, para identificação das necessidades na criação de planos de contingência e readequação da frota, levantamento dos custos reais e garantia de atendimento nos principais eixos de acesso aos serviços básicos da cidade.
Cidades como Istambul, na Turquia, e Dublin, na Irlanda, têm adotado medidas relevantes para preservação do sistema de transporte urbano, como a constante desinfecção de carros, estações de BRT e proteção efetiva de motoristas e passageiros. Essas medidas importantes dependem diretamente de atos e, fundamentalmente, de recursos do poder concedente, que deve oferecer condições mínimas para operabilidade, especialmente, em momentos delicados como o atual.
O transporte coletivo é a espinha dorsal das cidades e constitui serviço essencial. Cabe aos responsáveis pela formulação das políticas emergenciais atuarem em conjunto com os operadores do sistema de transporte para juntos chegarem a medidas que permitam a sobrevivência do transporte coletivo, sem riscos à saúde da população, fazendo valer a determinação prevista no decreto federal 10.282.
*Gustavo Branco, advogado, graduado pela Universidade de Brasília (UnB), sócio do escritório Mudrovitsch Advogados
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