Estudo produzido pela Rede de Pesquisa Solidária mostra que as mudanças operacionais realizadas pelos governos estaduais e municipais no transporte público, como redução na circulação de ônibus, trens e metrô, não acompanharam adequadamente a demanda e aumentaram as lotações dos transportes públicos particularmente nas periferias de grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, o que aumentou o risco de contágio da covid-19. Na capital paulista, as linhas da região central tiveram redução de 68% de passageiros e de 61,3% no número de ônibus circulando, ao passo que na região leste, a demanda se reduziu em cerca de 5% a menos do que na região central (63,6%), mas a redução da oferta de ônibus não acompanhou essa diferença, sendo mantida em 61,6%. Assim, o estudo conclui que as desigualdades relacionadas ao transporte público aumentaram em razão das medidas adotadas pelos gestores durante a pandemia.
As conclusões do trabalho estão reunidas em uma nota técnica publicada pela Rede de Pesquisa Solidária. O estudo foi coordenado por Mariana Giannotti, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e professora da Escola Politécnica (Poli), e teve participação dos pesquisadores Tainá Bittencourt e Pedro Logiodice, ambos da Poli e do CEM. O centro é um dos integrantes da rede, que reúne mais de 40 pesquisadores para analisar a eficácia e sugerir aperfeiçoamentos das políticas públicas para o enfrentamento da covid-19. Além de não reduzirem as taxas de lotação observadas nos anos anteriores, no sentido de diminuir a exposição e contaminação nos trajetos, [as mudanças] geraram muitas vezes condições ainda piores do que antes da pandemia, destacam os autores.
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De acordo com a pesquisa, as alterações feitas no sistema de transporte durante a pandemia elevaram em até 80% a frequência nas estações nas regiões periféricas. A redução da circulação de ônibus, que pode fazer algum sentido do ponto de vista financeiro, provoca lotações, aglomerações e aumenta, assim, o risco de contágio da população. As desigualdades sociais e de raça nos deslocamentos urbanos aumentam o risco de contágio em moradores das periferias. Com base no observado pelos pesquisadores, e considerando o cenário de retomada das atividades não essenciais, eles sugerem medidas para redução dos riscos, como a utilização de veículos adicionais em trechos de maior lotação, somados a veículos expressos e diretos entre grandes terminais e polos de origem e destino de viagens. Isso pode criar pontos de alívio e reduzir os custos associados ao maior número de veículos em operação, destacam.
O reforço de linhas locais e capilares que conectam as diferentes áreas da cidade às linhas estruturais de transporte público de média e alta capacidade também pode contribuir para reduzir a pressão por mais ônibus e aumentar a frequência do serviço. O estudo indica que é importante olhar a cidade como um todo, mas não apenas de forma agregada. As ações devem considerar as diferenças presentes no território para atuar de forma condizente à realidade de cada região, em busca de minimizar o impacto das desigualdades socioespaciais, afirma a professora Mariana Giannotti.
Demanda e oferta As políticas de isolamento restritivas adotadas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro reduziram a frequência aos locais de trabalho, ambientes de lazer e uso dos transportes públicos. Com isso, várias cidades diminuíram a oferta de ônibus, trens e metrôs. Mais de 300 linhas foram suspensas na Grande São Paulo e quase 600 na Grande Rio, por exemplo. Contudo, a demanda e a oferta reduziram em diferentes proporções e de forma não homogênea pelas cidades e uma grande parte das linhas de ônibus que teve aumento da demanda atende a periferia, cuja população enfrenta condições de trabalho mais precárias, recebe menor remuneração e se desloca por mais tempo e em piores condições.
Nas regiões mais afastadas, a lotação dos ônibus se mantém muito próxima dos já altos níveis observados antes da pandemia, o que contribui para a disseminação do vírus e aumenta as desigualdades entre as regiões e populações. Nesse cenário, em que a redução da oferta é proporcional à redução da demanda, a lotação estimada para grande parte das linhas periféricas seria maior do que seis passageiros por metro quadrado, o que corresponde a uma distância entre pessoas muito menor do que os dois metros recomendados pelas agências e organizações de saúde, resultando em altíssimo risco de contaminação pelo vírus, alertam.
A suspensão de rotas e redução da frequência, aliadas às restrições ao tráfego de veículos, provocaram a migração dos passageiros para outros modos de transporte que continuaram operando, como o metroferroviário. A frequência às estações de metrô e trem em São Paulo e Rio de Janeiro no início de maio, por exemplo, estava em 30% do usual nas regiões centrais, onde as condições sociais para o isolamento social são maiores. Nas regiões periféricas, a demanda seguiu os padrões anteriores à pandemia e, em alguns casos, chegou a ser até 80% maior, contabilizam no estudo.
Reduzindo a desigualdade Com base nesse cenário, os pesquisadores propuseram medidas que podem reduzir as desigualdades relacionadas ao transporte, apresentando simulações do impacto de diferentes cenários de isolamento social para a cidade de São Paulo. Na simulação com operação total da frota, o risco de contaminação causada pela aglomeração nos deslocamentos com transporte público é consideravelmente reduzido com as políticas de isolamento social.
Com taxa de isolamento médio de 45% e a premissa de disponibilidade de assentos para todos os usuários (sem aglomerações no corredor dos veículos), a recomendação é de aumento da oferta de ônibus em circulação em relação à operação anterior à pandemia, de modo a garantir deslocamentos mais seguros em termos do risco de contaminação. No centro, a frota poderia ser reduzida a níveis mais baixos, porém deveria manter a garantia de uma frequência horária mínima.
Na simulação de um quadro pós-isolamento social e com a retomada de 100% dos deslocamentos, foi adotado como critério a taxa de lotação máxima de dois passageiros por metro quadrado para garantir algum espaço entre passageiros em pé. Nesse cenário se repete a recomendação dada para o cenário anterior, mas grande parte das linhas que servem as regiões periféricas teria que receber mais do que o dobro do número de veículos que operam usualmente, ou contar com alternativas complementares de transportes como vans ou similares.
A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.
A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (FFLCH e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (FFLCH), Graziela Castello, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger, do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o Incor. A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise.
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