Desde que foi citado pela primeira vez, num relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1987, o conceito de desenvolvimento sustentável – que prega o aproveitamento de recursos naturais sem agredir o ambiente, para garantir a sobrevivência das gerações futuras – vem conquistando corações e mentes no mundo inteiro. Em 2020, quem sabe até pelo sentido de urgência trazido pela pandemia do novo coronavírus, este tema ganhou uma importância inédita, envolvendo diretamente o Brasil no debate.
Dono da maior reserva florestal do planeta e a caminho de se tornar o maior exportador mundial de produtos agrícolas, o Brasil também ostenta o título de país que mais devasta os seus biomas. Até uma década atrás, ou pouco mais, a responsabilidade pela destruição de vegetação nativa, sobretudo na Amazônia e no Cerrado, recaía sobre os produtores rurais brasileiros, cujos planos de expansão estariam estimulando a invasão de terras públicas. Hoje o papel de principal vilão ambiental é assumido pelo governo brasileiro – mas as acusações de agressão ao ambiente continuam respingando nos produtores rurais, que se mostram preocupados.
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Hoje os maiores interessados em acabar com o desmatamento na Amazônia são justamente os exportadores brasileiros de commodities agrícolas, porque isso atrapalha o negócio deles, resume Tasso Azevedo, coordenador da MapBiomas, ONG que acaba de publicar o mais completo relatório sobre a destruição da vegetação nativa no país – por iniciativa do Observatório do Clima, que reúne 36 entidades da sociedade civil.
Segundo Azevedo, o principal agressor da floresta é o especulador que ocupa uma terra pública – e 75% das terras da Amazônia são públicas – para tentar vendê-la mais tarde. Estudos mostram que seis de cada dez hectares de floresta desmatada viram pastagens, três acabam abandonados e só um hectare se torna lavoura produtiva, afirma. É esse especulador que precisa ser barrado, conclui.
Com base em dados e fotos de satélite fornecidos por dois institutos nacionais – o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) – e um norte-americano – o Global Land Analysis & Discovery, da Universidade de Maryland -, o relatório da MapBiomas traz números devastadores para a imagem do país.
O documento mostra – com fartura de fotos e identificação dos proprietários das terras, quando eles existem – que o Brasil perdeu no ano passado 12.187 quilômetros quadrados de vegetação natural, uma área oito vezes maior que a ocupada pelo município de São Paulo. A conta fica ainda mais impressionante quando convertida em hectares para se verificar a velocidade do processo de desmate: foram 3.339 hectares de mata nativa derrubados por dia, em média, ou 139 hectares por hora em 2019.
Como era esperado, as regiões que mais sofreram foram a Amazônia e o Cerrado – a primeira respondendo por quase dois terços (63,2%) da área desmatada e a segunda pelo outro terço (33,5%). Os demais ecossistemas foram bem menos atingidos: apenas 1,4% do desmatamento ocorreu no Pantanal, 1% na Caatinga, 0,9% na Mata Atlântica e 0,1% no Pampa. O município mais devastado foi Altamira, no Pará, onde as queimadas puseram abaixo 54.169 hectares de floresta.
A divulgação desse relatório, no fim de maio, só fez aumentar a pressão internacional contra o desmatamento no Brasil. Algumas semanas depois, em 23 de junho, a pressão ganhou o tom de ameaça, quando 29 fundos de investimentos – que administram US$ 4,1 trilhões, quase o triplo do PIB brasileiro em 2019 – manifestaram, em carta dirigida a alguns de nossos embaixadores, a disposição de retirar o capital investido no país, caso o governo Bolsonaro não contenha as queimadas criminosas.
O cerco à política ambiental do atual governo – ou à falta dela – continuou, em ritmo de bola de neve, com a divulgação de outra carta contundente, em 7 de julho, desta vez assinada por 40 empresários nacionais, de vários setores, alertando sobre o risco concreto de prejuízos para o país sem o combate inflexível e abrangente do desmatamento ilegal. A carta foi endereçada ao vice-presidente Hamilton Mourão, coordenador do Conselho Nacional da Amazônia Legal, que tentou acalmar os ânimos em reuniões virtuais com signatários das duas cartas e com representantes da ONG PanAmazônia, que reúne empresas e instituições da região.
Nessa maratona de reuniões, realizadas nos dias 9 e 10 de julho, Mourão reconheceu que o combate ao desmatamento começou tarde, prometeu controlar a situação até o fim de 2022 e anunciou um decreto presidencial proibindo as queimadas – legais – por 120 dias. No mesmo dia em que o vice-presidente falava com os empresários nacionais, o Inpe informava que o desmatamento na Amazônia havia crescido 25% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período do ano passado.
O fato é que atingimos um tal nível de descontrole que a comunidade internacional se viu obrigada a endurecer o diálogo com o governo brasileiro, afirma o diretor de conservação da WWF Brasil, Edegar de Oliveira. Com a redução do monitoramento e da fiscalização do Ibama, estamos fazendo vista grossa aos desmatamentos, que em 99% dos casos são ilegais. Não estamos cumprindo nem o nosso próprio Código Florestal, acusa.
Segundo Oliveira, o governo Bolsonaro está atuando na contramão dos seus antecessores mais próximos, que vinham combatendo o desmatamento e apoiando iniciativas bem-sucedidas, como a Moratória da Soja, pactuada em 2008, que resultou no compromisso dos exportadores de grãos de não comprar produtos provenientes de áreas desmatadas na Amazônia.
O governo atual estaria, na opinião dele, colocando em risco o acordo comercial assinado entre a União Europeia e o Mercosul, além de justificar boicotes a produtos brasileiros no exterior. O Parlamento europeu já está discutindo a adoção de medidas duras contra países que permitem agressões ao meio ambiente, como o Brasil. Caso se confirme, o prejuízo seria dos exportadores brasileiros em geral, alerta.
Até meados de julho não havia boicotes declarados a produtos brasileiros no exterior, mas já se percebia uma exigência maior de certificações socioambientais. Em alguns casos, basta a desconfiança do comprador. Uma empresa de aquicultura da Noruega, por exemplo, deixou de comprar ração da subsidiária brasileira da Cargill por acreditar que o produto estava associado ao desmatamento na Amazônia. O grupo Fischer, produtor de maçãs em Santa Catarina, ouviu de importadores da Alemanha e da Espanha que eles poderiam deixar de comprar o produto em 2021 se o desmatamento no Brasil continuar.
Além do risco que representa aos exportadores brasileiros, o desmatamento na Amazônia também joga contra o potencial de negócio da floresta em pé. Relatório da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos aponta que um hectare de floresta pode gerar até R$ 12 mil anuais em sistemas agroflorestais, enquanto um hectare desmatado para a pecuária daria um lucro de no máximo R$ 100 por ano e entre R$ 500 e R$ 1 mil para o cultivo de soja.
Outro estudo, da FSC (Forest Stewardship Council) Brasil, estima que o aproveitamento sustentável de 20 milhões de hectares da Amazônia (3,8% da área total do bioma em território brasileiro) acrescentaria US$ 1,6 bilhão ao PIB nacional, arrecadaria US$ 150 milhões em impostos e criaria dezenas de milhares de empregos diretos e indiretos.
A cadeia do açaí é um exemplo perfeito dos benefícios dos sistemas agroflorestais. É um negócio que emprega 150 mil famílias e já movimenta US$ 1 bilhão por ano, considerando a coleta, o processamento e o consumo do produto no mundo inteiro. E sem causar nenhum dano à floresta, aponta o climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).
Nobre é idealizador do projeto Amazônia 4.0, que prevê a criação de laboratórios móveis para a difusão de novos negócios agroflorestais na Amazônia. O primeiro deles, financiado por organizações independentes, deverá ficar pronto no ano que vem e será dedicado ao aproveitamento do cupuaçu num produto semelhante ao chocolate, o cupulate. A ideia, segundo ele, é não apenas agregar valor aos produtos já explorados na floresta, mas também aproveitar o potencial de produtos ainda não conhecidos – e que são muitos.
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