Em junho de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançava, em cerimônia em Missão Velha (CE), a Transnordestina, uma ferrovia que iria interligar pólos produtores no interior aos portos das grandes Recife e Fortaleza. A previsão era que em 2010 os trens estivessem nos trilhos, com investimento estimado à época em R$ 4,5 bilhões (R$ 10,8 bilhões em valores corrigidos pelo IPCA).
Dez anos depois, e com R$ 6,7 bilhões investidos, a Transnordestina tem 53% do projeto finalizado, sem prazo para sua conclusão.
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O UOL apurou que o investimento total da obra está hoje estimado em R$ 11,2 bilhões. Não há certeza da liberação dos R$ 4,5 bilhões para finalizar a obra. O governo federal demonstra interesse em seguir com a construção ferrovia, mas não apresenta prazo para isso.
A demora tornou o futuro da Transnordestina incerto. Ao longo dos últimos anos, um histórico de problemas entrou no caminho da ferrovia apontada na época de seu lançamento como um divisor de águas logístico da região.
Em 2017, o TCU (Tribunal de Contas da União) publicou acórdão determinando que todas as entidades do governo federal envolvidas não destinassem recursos para as obras ou para concessionária da obra, até a apresentação de projetos e suas alterações, e definição do orçamento.
Um ano depois, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), que fiscaliza as concessões ferroviárias federais, fixou prazos para que a TLSA (Transnordestina Logística S/A) -que é uma SPE (Sociedade de Propósito Específico) criada entre entes públicos e privados para executar a obra e que tem como acionista controlador a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) – corrigisse os problemas com atrasos na execução de obras.
Em 2019, parte as obras foram retomadas no trecho entre Piauí e Ceará com recursos da CSN, mas seguem paradas em Pernambuco -onde está o maior percurso da ferrovia.
ANTT quer anular contrato para fazer nova licitação
O atraso levou, em março deste ano, a ANTT a deliberar uma proposição à União para que declare a caducidade do contrato de concessão da ferrovia da TLSA. Na prática, a agência reguladora quer que novos contratos sejam feitos para que a obra siga.
Como é uma recomendação, a decisão está com o Ministério de Infraestrutura, que é hoje a pasta responsável pelas políticas públicas de transportes federais no país.
Em resposta a um pedido feito com base na LAI (Lei de Acesso à Informação), o ministério informou ao UOL que os atrasos observados decorrem do descumprimento contratual por parte da concessionária.
Ainda segundo a pasta, diante de indício de inadimplemento contratual, foi instaurada uma sequência de processos administrativos para apuração das causas do inadimplemento.
Segundo o ministério, enquanto não ocorrer a decretação da caducidade, o contrato encontra-se eficaz, e as obras devem seguir.
Questionado em duas oportunidades, o ministério não deu prazo previsto para conclusão da obra.
Também procurada pela reportagem, a TLSA informou que não iria fazer nenhuma manifestação.
Maior parte do percurso necessita de reparo em trilhos existentes.
O projeto original foi batizado de Nova Transnordestina porque iria não só construir novos trilhos, como recuperar outros que estavam desativados na região. Dos 1.753 mil quilômetros da obra, 1.150 seriam recuperados de ferrovia já existente.
Quando concluída, a obra deve ligar a região produtora de grãos conhecida por Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), aos portos de Suape, em Ipojuca (PE), e de Pecém, em São Gonçalo do Amarante (CE).
A obra foi apresentada na gestão petista como uma das mais importantes no Nordeste, ao lado da transposição do rio São Francisco.
Ao reclamar do atraso já perto do fim seu segundo mandato, Lula fez discurso em Salgueiro (PE), em agosto de 2010, e culpou o olho gordo de vários outras entidades como fator que empacou a obra.
Em Missão Velha, eu fui há cinco anos, tinha máquina trabalhando lá. E aí começou a surgir problema com o projeto; depois, surgir problema com licitação; depois, surgir problema com supressão vegetal; depois surgir problema com o Ministério Público; depois, surgir problema na licitação, ou seja, é um verdadeiro inferno para você concluir um projeto dessa magnitude, falou.
Ferrovia de ligação com portos poderia fomentar novos mercados, diz consultor
Mestre em engenharia de produção pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), o consultor logístico Marcílio Cunha explica que o atraso deve causar um novo aumento no custo final da obra. Pelo tempo, muita coisa vai sofrer alguma forma de manutenção, já que deve ter ocorrido ferrugem em trilhos, até roubos, diz.
Cunha acompanha o projeto desde seu lançamento e diz ver três soluções possíveis para findar o problema e seguir a obra. Uma seria o TCU solicitar nova licitação, dar como vencido os contratos assinados. Uma segunda seria a própria concessionária conseguir a aprovação de um novo cronograma junto ao TCU e ao ministério. E a última possibilidade seria a empresa atual fazer um trecho -que está reiniciando obras- e outras pegarem outros.
Especialista na área e entusiasta da transporte ferroviários, Cunha afirma que terminar a obra é imprescindível para parte do Nordeste. Hoje 90% do que é transportado no Nordeste anda por meio rodoviário, que é muito mais caro. Um vagão de trem transporta até 100 toneladas. Por baixo isso representa 4 carretas carregadas, explica.
Diante da paralisação e demora, ele explica que há empresas internacionais que têm interesse na obra. Existem alguns players estrangeiros que têm interesse em participar nessa obra, mas essas negociações demoram porque existe ainda um contrato em vigor. Isso que precisa ser resolvido logo, afirma.
Segundo o consultor, mesmo novos mercados podem surgir com a ferrovia em funcionamento. Um exemplo, cita, é o polo gesseiro no sertão do Araripe pernambucano.
Lá a gipsita [minério usado para fazer o gesso] tem 95% de pureza, um dos mais altos índices do mundo. Mas hoje é mais barato São Paulo comprar esse gesso da Espanha, que aqui do Sertão do Araripe. Todo gesso que sai daqui segue por via rodoviária, e o preço do frete custa cinco vezes mais que o material. Se tivesse a ferrovia, poderia trazia isso do Araripe para Suape ou para Pecém e sairia de navio, o custo seria lá embaixo. Isso para ingresso no mercado internacional seria fundamental, já que a gente deixa de exportar esse gesso porque não tem como competir, diz.
O UOL também procurou os dois complexos portuários que são destinos finais da obra.
No Complexo do Pecém, há uma área de 84 hectares reservada para receber a Transnordestina.
Já o Complexo Industrial Portuário de Suape se manifestou por nota lamentando o atraso da ferrovia, mas diz que reconhece os esforços do Ministério da Infraestrutura em encontrar uma solução que viabilize a conclusão da obra conforme o projeto original.
Execução dos trechos: Salgueiro-Missão Velha 100% Salgueiro-Porto de Suape – 41% Missão Velha-Pecém 16% Trindade-Salgueiro – 100% Eliseu Martins-Trindade – 67%
Linha do tempo: 1997 – Concessão para exploração e desenvolvimento do serviço de transporte ferroviário de carga da Malha Nordeste 2003 – Grupo de Trabalho Interministerial encarregado de analisar e elaborar proposta para a conclusão da Ferrovia Transnordestina
2005 – Resolução ANTT autoriza a elaboração de projeto para construção, ao alargamento, à remodelação e à modernização de ramais pela CFN na malha Nordeste. – Assinatura do Protocolo de Intenções para o projeto de infraestrutura denominado Nova Transnordestina. Valor estimado em R$ 4,5 bilhões.
2006 – Lançamento pelo presidente Lula e início da obra
2010 – Obra atinge pico, com 10 mil trabalhadores espalhados pelos trechos.
2013 – Assinatura do Acordo de Acionistas e Acordo de Investimentos, que fixa em R$ 7,5 bilhões o valor da obra; custos excedentes deveriam ser bancados pelo parceiro privado.
2014 – Assinatura do Contrato de Concessão da Transnordestina, colocando a construção como obrigação da concessionária e indicando prazos. Obra começa a apresentar dificuldades e redução do ritmo, e CFN alega falta de recursos.
2017 – Última liberação de recursos pelo Finor (R$ 152 milhões) antes do TCU suspender os repasses de recursos públicos por meio do Acórdão Nº 67
2018 – Com inadimplemento contratual, processos administrativos para apuração da concessionária são abertos; ANTT fixa prazos para que TLSA corrija os problemas com atrasos na execução das obras.
2019 – Obras retornam nos trechos entre o Ceará e o Piauí, mas com recursos da CSN
2020 – Com 14 anos de obra e inacabada, ANTT publica decisão em que propõe à União a declaração da caducidade do contrato de concessão da ferrovia
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