Valor Econômico – Seja quem governar o Brasil de 2023 até o fim de 2026 terá uma bola de ferro com a qual terá de lidar: a perda do protagonismo da indústria de transformação na economia brasileira.
O peso da indústria manufatureira no Produto Interno Bruto (PIB) caiu de 15,9% em 2005 para 11,9% em 2021, segundo dados das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No comércio exterior, a representação do setor manufatureiro como percentual das exportações do Brasil passou de 79,3% em 2005 para 51,4% em 2021, segundo o Ministério da Economia.
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Em 2008, o investimento na indústria de transformação como percentual do investimento total na economia era de 28% – dez anos depois, havia caído a 15%.
Para estancar essa queda e reverter o quadro, o primeiro objetivo teria de ser tornar o Brasil mais competitivo, de modo que possa se integrar mais às cadeias globais de valor (CGV)s. “Ficamos à margem desse processo. Hoje não conseguimos exportar um automóvel feito no Brasil porque ele é caro e ruim”, afirma ao Valor o economista Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
O próximo governo, portanto, precisaria traçar um plano de reindustrialização, que teria de ser uma política de Estado, e não de um mandato. Esse processo poderia ter o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) como financiador de longo prazo em um programa de atualização de tecnologia, com juros subsidiados e contrapartidas como aumentar as exportações e fazer a transição para uma economia de baixo carbono, afirma José Luís Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB). As reformas tributária e administrativa, acrescenta, seriam auxiliares.
Mas, se o Brasil não levar adiante tais ajustes, pode continuar vendo o setor manufatureiro minguar ainda mais e não conseguir se beneficiar da reorganização das cadeias de valor em curso, alerta Dan Ioschpe, presidente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
A seguir, os principais pontos abordados pelos entrevistados:
Cadeias e competitividade
Samuel Pessôa – O maior problema é que a indústria brasileira ficou à margem da construção das CGVs. Esse fenômeno, que adquiriu velocidade a partir da década de 1990, divide o processo produtivo em várias etapas, e cada uma tem de ser feita em um lugar diferente. O Brasil faz meio que tudo aqui. E fica tudo meio ruim.
No Brasil prevaleceu certa visão da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas (Cepal) no momento em que o mundo mudou muito. A visão cepalina não era tão ruim quando a lógica do mundo eram as grandes multinacionais se estabelecendo e produzindo em diversos países, com uma planta produzindo carro, outra, eletrodomésticos. Essa lógica foi mudando a partir de 1970, 1980, 1990 e virou essa construção das CGVs, com os países se especializando em processos e serviços. Isso gerou ganhos de produtividade e qualidade. Mas ficamos à margem desse processo.
Hoje não conseguimos exportar um automóvel feito no Brasil porque é caro e ruim. Mas conseguimos exportar avião porque a Embraer está dentro da cadeia produtiva de aviões. A Embraer projeta o avião e monta. Todo o restante, compra. O resultado é que o avião da Embraer é tão bom quanto qualquer outro do mundo. Essa lógica tem de ir para outros setores.
Dan Ioschpe – O Brasil precisa ter maior ingresso nas cadeias internacionais de valor. Isso, na nossa visão, significa participar [mais] dos acordos internacionais, como se tentou no acordo com a União Europeia, e também em outras formas que promovam integração do Brasil ao mundo. Não apenas no comércio, mas em foros que discutem sustentabilidade, créditos de carbono etc., como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
José Luís Oreiro – A indústria manufatureira sofre de um gravíssimo problema de competitividade. Isso vai além do preço e é decorrente do atraso tecnológico da indústria de transformação. Foram anos e anos de baixo investimento, que a está deixando para trás.
Desindustrialização
Pessôa -Se chamarmos de desindustrialização a queda da participação da indústria no PIB, podemos dizer que o Brasil passa por esse processo. Mas isso ocorre desde 1980. E não é ruim nem bom. É o que o mercado produziu.
Ioschpe – A participação da indústria no PIB talvez seja a melhor forma de se medir a desindustrialização. E o que temos visto é um declínio da participação da atividade de transformação industrial do PIB, caindo quase à metade [do que já foi] nos últimos 30. Em outros países houve certo recuo [da participação da indústria] por causa do crescimento tecnológico, por uma série de atividades de serviços, e até mesmo pelo setor agrícola. Mas não na proporção que vemos no Brasil. Essa trajetória das últimas décadas está muito correlacionada a uma mediocridade do PIB como um todo, da renda per capita e do desenvolvimento socioeconômico nesse período.
Oreiro – Nossa desindustrialização é ruim porque é prematura. Ocorre antes que se alcance o que na literatura se chama ponto de Lewis, em que o desenvolvimento econômico se dá em condições de oferta limitada de mão de obra. A desindustrialização nas economias modernas ocorreu quando boa parte da população já havia passado do setor de subsistência, que era o da agricultura, para o setor moderno. Seria diferente se a desindustrialização aqui ocorresse com a maioria da população trabalhando no setor moderno, que seria hoje o de serviços de alta tecnologia, como fazem empresas como a Amazon.
Pessôa – Qualquer política de desenvolvimento industrial tem de estar ligada a progresso tecnológico, inovação, pesquisa e desenvolvimento. Iniciativas que fizemos no passado, como gastar dinheiro do BNDES para o setor de frigoríficos de carne, que é uma tecnologia do fim do século XIX, não faz sentido. Além disso, uma política de desenvolvimento industrial tem de ser precedida por cuidadoso estudo e planejamento. Sair gastando como se fez com a indústria naval não faz sentido. Ou seja, a necessidade de se investir no setor não é condição suficiente. Tem de ter governança para gerar bons frutos. Ou será apenas desperdício.
É preciso, portanto, bons projetos, boa governança e ter ligação com atividade de inovação e incorporação de novas tecnologias. Além disso, a questão ambiental parecer ser a mais séria da humanidade hoje. É transversal e tem de ser considerada em qualquer desenho de política pública hoje.
Ioschpe -Precisamos incentivar um esforço muito maior de pesquisa, desenvolvimento e inovação [na indústria]. A melhor forma de agregar valor ao longo do tempo é por meio de uma atividade pujante de pesquisa e inovação. Se não acelerarmos os bons instrumentos para fomentar isso no Brasil, não iremos muito longe. Temos instrumentos interessante como a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), mas precisamos fazer mais.
A reindustrialização tem enorme relevância para o desenvolvimento socioeconômico do país. Sem a recuperação do PIB industrial, é improvável que tenhamos crescimento mais expressivo do PIB nacional. Porque a indústria tem algumas características essenciais em seu processo, como a questão da fronteira tecnológica. Como vemos com a descarbonização, a eletrificação veicular, a geração de energias alternativas, e a própria indústria 4.0.
Oreiro – A única chance que temos de dar emprego decente para a população e [fomentar o] crescimento é reindustrializando o país. O primeiro passo para isso é um programa de modernização da indústria brasileira. Isso não é política para um mandato de governo, mas de Estado. Ou seja, não caberá apenas ao próximo governante. A sociedade brasileira precisa se conscientizar que com boi, soja e minério de ferro não vamos dar emprego decente para uma força de trabalho de 110 milhões de pessoas. Temos de fazer essa reforma estrutural.
E aproveitar a janela oportunidade dada pela transição para uma economia de baixo carbono. Essa é nova revolução industrial. Terá implicações na matriz energética, na maneira como produzimos bens e serviços. E vai demandar investimentos públicos e privados. Essa massa de investimentos pode criar um mercado para novas indústrias verdes no Brasil.
Reformas necessárias
Pessôa – A maior política industrial hoje é a PEC 45, que reduz o custo de conformidade da legislação tributária. Hás muitos problemas na indústria, mas dois são fato. O primeiro é que o setor produtivo é o mais tributado. Dentre agropecuária, indústria e serviços, o que tem maior carga tributária é a indústria. A carga tributária sobre serviços e agropecuária tem de subir, e a da indústria, cair. O segundo ponto é a complexidade da legislação de impostos indiretos como ICMS, ISS, PIS/ Cofins e IPI, que dificulta mais a vida do setor.
O custo de conformidade é muito maior na indústria, que tem cadeias produtivas longas, tem de conviver com diversos regimes tributários especiais, diversos contadores, e muito litígio. É preciso unificar a estrutura de impostos. [Por isso], a PEC seria a melhor política industrial, uma vez que resolve a maior parte desses problemas.
Ioschpe – A indústria brasileira precisa de um ambiente que contemple quatro aspectos: tranquilidade institucional, trajetória macroeconômica adequada ao longo do tempo, melhoria das condições sociais do país e melhor distribuição da renda, e sustentabilidade ambiental.
Tendo isso sob controle, entramos em uma agenda mais especifica, que é importante para o país como um todo. Mas, olhando pelo lado da indústria, o primeiro item da agenda é uma reforma tributária que melhore custos de pagar impostos, insegurança jurídica e oneração exagerada sobre o setor industrial frente aos outros.
E o melhor instrumento para isso são as PECs 45 e 110, que preveem unificação de impostos sobre o consumo de bens e serviços, o IVA. Esta é a forma correta de se fazer, com a tributação no destino, e não na origem. Essas são características essenciais de uma boa tributação sobre bens e serviços, que resolveriam a discrepância de tributação sobre o setor e reduziriam custos para empresas, sociedade e a insegurança jurídica.
Hoje no Brasil, a indústria representa entre 10% e 15% do PIB e mais de 35% da arrecadação. É uma disfunção se arrecadar duas vezes o que se contribui para a atividade econômica, enquanto outros setores estão subrepresentados na tributação. É algo que tem de ser consertado.
O segundo item importante da agenda é a reforma administrativa, que ajudará na trajetória de equilíbrio macroeconômico ao longo do tempo. Com ela, tem-se melhor controle das contas públicas e presta-se serviço mais inteligente e agilizado para sociedade.
O terceiro item fundamental é a aceleração da infraestrutura, tanto em estradas, portos, aeroportos e energia, como em relação à conectividade.
Oreiro – O próximo presidente deveria recuperar o papel do BNDES como financiador de longo prazo em um programa de atualização tecnológica do parque industrial brasileiro, com juro subsidiado. Isso é fundamental para que a indústria não desapareça.
Ao contrário das vezes anteriores, o BNDES pode exigir dois tipos de contrapartida: meta de exportação e de conquista de market share nos mercados internacionais. Temos de fazer a indústria brasileira se voltar para o exterior. Essa é a abertura comercial correta, e não reduzir tarifas de importação da noite para o dia e destruir a indústria. Tem de dar financiamento para fazer atualização tecnológica do parque industrial brasileiro, o que implica comprar máquinas e equipamento modernos para aumentar a produtividade.
O segundo vetor é de transição para economia de baixo carbono. Então, aquilo que for financiado pelo BNDES no processo de modernização tecnológica, tem de ter embutidas metas de redução de CO2. Isso é particularmente importante para indústria automobilística brasileira, que ainda não definiu prazo para parar a produção de carros por combustão interna.
A reforma tributária ajuda na reindustrialização. De todo ICMS arrecadado hoje, a indústria de transformação paga 50%. O nosso sistema de impostos indiretos penaliza a indústria e beneficia o agronegócio, que paga 10% do ICMS arrecadado no Brasil.
‘Reshoring’
Pessôa – Falar sobre esse movimento de ‘reshoring’ e regionalização da produção ainda é muito especulativo. Será ruim para o mundo, que crescerá menos. A taxa de crescimento da produtividade da economia mundial cairá. E esse processo de globalização das CGVs será, em parte, revertido.
A economia brasileira teve dificuldade de se adaptar à economia globalizada. Resistimos por muito tempo. É possível que em um mundo mais fechado tenhamos desempenho um pouco melhor.
Ioschpe – [Essa reorganização das cadeias globais] é oportunidade e ameaça. Estamos vendo a revisão do processo de transferência da atividade industrial para Ásia e China. Isso poderia trazer não apenas conteúdo para o mercado brasileiro, mas para outros países próximos do Brasil que desejassem diminuir a dependência em relação a uma única região produtora.
Mas, se não endereçarmos nossas questões de competitividade e desenvolvimento tecnológico, podemos acabar ainda mais perdedores à medida que outros países conseguem fazer isso melhor. [Aproveitar esse movimento] dependerá de como o Brasil trabalhará na próxima década. Se ocorrer nos termos da política e planejamento das últimas três décadas, não vamos ter um bom resultado.
Oreiro – O ‘reshoring’ ocorrerá mais perto de mercados consumidores como EUA e União Europeia. Para que pudéssemos aproveitar essas mudanças, o investimento em infraestrutura teria de melhorar consideravelmente, seja em portos, seja em transporte de carga em trens. O investimento para isso criará demandas importantes.
Fonte: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/08/25/novo-governo-tera-de-reinventar-a-industria.ghtml
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