O Globo – Com jeito de quem não quer nada, na quarta-feira a Agência Nacional de Transportes Terrestres divulgou sua Deliberação nº 47, com três artigos. Outorgou à empresa TAV Brasil, constituída em fevereiro de 2021 com capital de R$ 100 mil, autorização para “a construção e exploração de estrada de ferro entre São Paulo e o Rio de Janeiro pelo prazo de 99 anos”.
Ganha um lugar na viagem inaugural desse trem quem conseguir explicar o que essa autorização significa, pois faltam o capital, o projeto de engenharia e a demonstração da demanda.
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É o velho Trem-Bala que ressuscita. Pelo que se promete, em junho de 2032 ele ligará as duas cidades em 90 minutos. A autorização da ANTT custou-lhe uma folha de papel. Esse trem custaria algo como R$ 50 bilhões, cerca de US$ 10 bilhões.
Sonhar é grátis. Lula já disse que pretende reativar os estaleiros do Rio. Seria o quarto polo naval que sua geração financia, coisa inédita na história das navegações. Agora reaparece o Trem-Bala. Ele foi um sonho do consulado petista, acabou em pesadelo e só serviu para produzir uma empresa estatal.
Antes que se dê outro passo com o Trem Bala 2.0, convém revisitar o que aconteceu com o primeiro projeto.
Em 2004, durante o primeiro mandato de Lula, foi constituído um Grupo de Trabalho para estudar a “ligação ferroviária por trem de alta velocidade entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro”. Seu coordenador era José Francisco das Neves, o “Doutor Juquinha”, presidente da estatal Valec — Engenharia, Construções e Ferrovias S.A..
Os doutores visitaram fábricas da Itália e da Alemanha e, em abril de 2005, o grupo de trabalho recomendou o projeto da italiana Italplan. O Trem-Bala ligaria o Rio a São Paulo em 88 minutos, sem paradas, transportando cerca de 90 mil passageiros por dia. A obra levaria sete anos, e a concessão duraria outros 42.
A conta ficaria em US$ 9 bilhões, sem que a Viúva tivesse que botar um centavo. (Em 2004, o dólar estava a R$ 3)
Um curioso intrigou-se com o fato de que o trem iria do Rio a São Paulo sem qualquer parada. Todos os outros trens de alta velocidade param no caminho.
O Doutor Juquinha disse-lhe que essa era a proposta dos italianos e que não havia motivo para preocupação, pois a ministra Dilma Rousseff havia incluído o Trem-Bala no Programa de Aceleração do Crescimento, o falecido PAC. Qualquer dúvida, os italianos esclareceriam. Procurados os italianos, deu-se o seguinte diálogo:
Por que o trem vai do Rio a São Paulo sem paradas?
Porque pediram um projeto sem paradas.
O TCU parou o trem
Em 2007, o BNDES e o Tribunal de Contas da União (TCU) mastigaram as contas do projeto da Italplan. Saltou aos olhos que o Trem-Bala precisaria de subsídio. Além disso, sua malha começou a espichar indo até Campinas. Espichou também o custo, subindo para US$ 11 bilhões.
Em abril de 2008, Lula anunciou que a licitação do trem aconteceria em outubro. Ele estaria nos trilhos durante a Copa do Mundo de 2014 com oito paradas. Não houve a licitação, mas o custo estimado pulou para US$ 15 bilhões. Tudo isso, sem que houvesse um projeto de engenharia, numa obra que teria 16 quilômetros de túneis.
Em 2010 (ano eleitoral), o assunto estava no Tribunal de Contas e lá percebeu-se que a estimativa de demanda (e da renda) havia sido grosseiramente manipulada. O TCU freou o projeto por algum tempo, e os italianos foram mandados passear.
Candidato ao governo de São Paulo, o petista Aloizio Mercadante prometia trabalhar para que o trem fosse também a Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto e Rio Preto. Nessa campanha eleitoral, Lula comparou a audácia da obra à da construção da Torre Eiffel, em Paris. O trem só deveria rodar em 2017, mas em 2010 seu projeto produziu sua estatal, a Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade, Etav. Durante a campanha, o Trem-Bala foi uma cereja de bolo. Chegou-se a anunciar que ele poderia ir a Curitiba.
Passada a eleição, adiou-se a licitação da obra. Consórcios de China, França, Coreia e Espanha, que teriam interesse na obra, caíram fora. (Alguns, como o coreano, podem ter se reciclado.)
Um grande empresário nacional ironizava: “Se o empreiteiro é o sujeito que convenceu o faraó a empilhar aquelas pedras no deserto, com esse trem o faraó (ou faraoa) quer fazer a pirâmide, mas os empreiteiros não querem.” O leilão foi adiado três vezes e nunca aconteceu.
Em setembro de 2011, a ANTT informou que os estudos de engenharia demorariam pelo menos um ano. A essa altura o Trem-Bala já havia consumido R$ 63,5 milhões, e o custo da obra estava estimado em US$ 20,1 bilhões. (Em 2005 falava-se de US$ 9 bilhões.)
Em 2014, Dilma Rousseff admitiu que o Trem-Bala havia deixado de ser prioridade.
Litígio na Itália e Juquinha na cadeia
A única coisa que andou foi um litígio judicial aberto pela Italplan na Itália. A empresa, que em 2004 tinha a preferência do grupo de trabalho, processou o governo brasileiro e em março de 2016 pedia na Justiça cerca de R$ 1 bilhão por serviços prestados.
Em julho de 2012, por conta de outras malfeitorias praticadas na Valec, o “Doutor Juquinha” foi preso. Dormiu poucas noites na cana. Anos depois, ralou uma condução coercitiva.
Andou também a estatal Etav. Transformou-se na Empresa de Planejamento e Logística (EPL). Em 2017, empregava 143 pessoas e custava R$ 99 milhões anuais. Já a Valec tinha 1.027. Ambas sobrevivem, fundidas na Infra S.A..
Cinco personagens em busca de um trem
Lula comparou as críticas ao projeto do Trem-Bala, nascido em 2004, às que foram feitas à construção da Torre Eiffel. A torre ficou pronta em menos de dois anos.
O ministro dos Transportes, Renan Filho, informa que a autorização dada pela ANTT para a construção e operação por 99 anos do Trem-Bala de Lula 3.0 é um projeto inteiramente privado da TAV Brasil. A autorização da ANTT é inteiramente pública. Renan tinha 24 anos e acabara de se formar em economia quando o grupo de trabalho do “Doutor Juquinha” dizia a mesma coisa.
Geraldo Alckmin, atual vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, conhece a história do Trem-Bala desde 2009, quando era secretário de Planejamento do governo de São Paulo. Em 2010, como governador eleito, ele sugeria que o trem não passasse pelos aeroportos de Guarulhos e Viracopos, mas que eles fossem servidos por duas outras ferrovias expressas.
Aloizio Mercadante, defensor da extensão da malha do Trem-Bala para Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto e Rio Preto, é o atual presidente do BNDES.
Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, foi um implacável diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) em 2011, durante a “faxina ética” que Dilma Rousseff fez no setor de transportes do seu governo. Conhece a história da Valec e do Trem-Bala de cor e salteado.
Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/elio-gaspari/coluna/2023/02/lembra-do-trem-bala-ele-voltou.ghtml
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