Nem sempre carro é sonho de quem usa transporte

Valor Econômico – Ao incluir financiamento para renovação da frota de ônibus, o novo programa do carro popular traz boas notícias para brasileiros que utilizam transporte público. Ônibus, trem e metrô são os meios de transporte que a consultora óptica Rosemeire Beltrami usa diariamente para chegar ao trabalho. Para Philip Yang, especialista em urbanismo, as novas tendências indicam que chegou a hora de parar de estimular o uso do carro, que pesa entre uma e duas toneladas, no transporte de uma única pessoa.

A extensão de linha de metrô do local onde trabalha, próximo à avenida Paulista, em São Paulo, até sua casa, em Santo André, no ABC, seria, hoje, o sonho de consumo de Beltrami, visto que nos trilhos ela consegue velocidade. “Carro não compensa”, diz. Além do custo de manter um veículo, ela percebe que quando pega carona com um amigo demora muito mais.

Meire, como é mais conhecida pelos amigos, já teve um carro popular. Em 2004 comprou um Ford Ka, compacto, zero-quilômetro. “Excelente para meu tamanho”, diz, referindo-se à baixa estatura. Ela lembra até o nome do motor: Zetec – “era ótimo”.

Na época, o Ka custou em torno de R$ 25 mil. Beltrami juntou o dinheiro de uma rescisão e mais umas economias. “Não era nenhum absurdo comprar um carro novo”, diz. O preço de um popular hoje? “Uns R$ 60 mil” é o palpite dela. É muito. Por enquanto, ela prefere encerrar o financiamento da casa onde mora. “No meu caso, a escolha é carro ou casa. Prefiro a casa”, diz.

Para Yang, que é fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole), um dos problemas do incentivo ao transporte individual em detrimento ao coletivo é a “ociosidade de um carro”, que pesa entre uma e duas toneladas para, muitas vezes levar uma única pessoa de 80 quilos. “Sem contar que o automóvel usado por uma só pessoa passa quase 90% do tempo em garagem”, destaca.

Além disso, lembra o especialista, com o sistema de compartilhamento, a cultura da propriedade do carro está mudando. Colocar mais veículos nas ruas também aumenta risco de acidentes e piora a poluição. “Historicamente, o aumento de frota tem correlação com a elevação no número de fatalidades no trânsito”, destaca Yang.

“Quem mora na periferia não tem onde guardar um automóvel”
— João Xavier da Silva

Para ele, uma das possíveis causas das jornadas de junho de 2013 pode ter sido o efeito do “trânsito infernal” nas pessoas. “O simples aumento de vinte centavos no preço da passagem provocou as mobilizações”, diz, referindo-se à onda de protestos em centenas de cidades do país que teve como origem o reajuste no preço do transporte público.

Yang defende que programas com incentivos fiscais incluam outros meios de transporte. Cita, como exemplo, eventual redução de tributos de bicicletas. “Seria um gesto voltado a modais mais amigáveis com o meio urbano”, diz.

O que mais incomoda Beltrami em relação ao transporte público é o tempo que ela espera no ponto de ônibus. É a mesma reclamação do porteiro João Xavier da Silva, que se desloca do Jardim São Jorge, zona sul, para a região dos Jardins, diariamente às 4h. Além da demora, os ônibus que passam em seu bairro são do tipo pequeno. Ou seja, todos viajam apertados.

Mesmo assim nem ele nem o colega de trabalho José Anterio dos Santos, auxiliar de serviços gerais, comprariam um carro mesmo que tivessem dinheiro para isso. Quem mora na periferia, como eles, nem sempre tem onde guardar um automóvel. “As pessoas em geral não entendem que a realidade da periferia é outra”, afirma Silva. “E mesmo que pagasse uma garagem a gente pensa que o carro está seguro, mas não está”, diz Anterio.

Não se trata apenas de falta de lugar para guardar. E as despesas com combustível e seguro? Também morador na zona sul de São Paulo, Anterio sai de casa em ônibus e cruza Diadema, no caminho, em trólebus (seu preferido) até chegar no Jabaquara, onde pega o metrô. No terminal do trólebus faz fila até ser o primeiro. Só para ir sentado. Nos fins de semana, bem que ele gostaria de visitar mais as filhas em Carapicuiba. Mas em transporte público são quase quatro horas para chegar.

Na classe média, o carro ainda é sonho de muita gente. A fisioterapeuta Mariana Souza Martins já teve um Onix, pelo qual pagou em torno de R$ 55 mil em 2019. Vendeu o carro para pagar uma viagem para uma temporada nos Estados Unidos. Na volta, pensou que morar perto do metrô ajudaria. E também notou que os preços dos carros subiram muito. Mesmo assim, ela diz que trocaria o transporte coletivo por um veículo só para ela. “Só para ir sentada”, diz.

Segundo Yang, para o transporte público alcançar melhor qualidade e, consequentemente, mais usuários, o governo poderia incluir a mobilidade em ferramentas como os PPIs (Programas de Parcerias de Investimentos), que aproximam Estado e iniciativa privada.

Há menos de dois meses, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) apresentou ao Ministério do Desenvolvimento Regional um projeto de aluguel de frota de ônibus elétricos pelo governo federal para os municípios.

A ideia, segundo o coordenador de mobilidade do Idec, Rafael Calabria, é promover mobilidade sustentável e, ao mesmo tempo, reduzir a crise financeira do transporte público no país.

Para Calabria, embora transporte público seja atribuição municipal, o governo federal poderia comprar os veículos e alugá-los para as prefeituras, que contam com menos recursos. “Em geral, as cidades recebem obras viárias para o trânsito. É preciso pensar em ações mais robustas”, destaca.

Recente estudo da Confederação Nacional da Indústria mostra que o Brasil precisaria investir R$ 295 bilhões até 2042 em infraestrutura de mobilidade urbana em 15 regiões metropolitanas para equipar a infraestrutura desses municípios ao padrão da Cidade do México e Santiago, consideradas referência na oferta de transporte urbano na América Latina.

A falta de financiamento, aponta o estudo, é o maior gargalo para a expansão do transporte urbano no país. A CNI defende um esforço para viabilizar fontes de investimentos, com recursos nacionais e estrangeiros, além da participação pública e privada.

Dos R$ 295 bilhões previstos, R$ 271 bilhões iriam para a expansão de linhas de metrô para mais do que dobrar a extensão da malha. Investimentos para ampliar a rede de trens absorveriam R$ 15 bilhões, e os BRTs, R$ 9 bilhões.

Anterio, o auxiliar de serviços gerais, diz que enquanto viver não vai perder a esperança: “Um dia isso tem que melhorar”.

Fonte: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/06/06/nem-sempre-carro-e-sonho-de-quem-usa-transporte.ghtml

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