Por MARCUS QUINTELLA – Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/URFJ e mestre em Transportes pelo IME.
Diretor-executivo da FGV Transportes
A autorregulação ferroviária vem sendo discutida no mercado e ainda existem pontos que precisam ser esclarecidos e pacificados, para que essa inovação trazida pela Lei das Ferrovias (Lei nº 14.273/2021) seja fadada ao sucesso que todos esperam.
Certamente, existem muitos interesses conflitantes no mercado ferroviário brasileiro e o consenso sobre esse novo marco legal precisa ser buscado, especialmente no caso da autorregulação, com a participação de todos os envolvidos.
Diferentemente do modelo vigente, no qual a ANTT possui a prerrogativa exclusiva de exercer a regulação do setor ferroviário, a autorregulação busca a participação ativa das próprias concessionárias e autorizatárias ferroviárias, por meio de uma entidade de direito privado e sem fins lucrativos, para atuar na definição de padrões, normas e práticas operacionais e fazer a mediação de eventuais conflitos comerciais e concorrenciais, de forma a garantir a segurança, eficiência e eficácia na prestação dos serviços.
Entretanto, a nova lei preconiza que a autorregulação deverá ser supervisionada, regulada e fiscalizada pelo poder público, ou seja, será uma autorregulação regulada. Ainda não se sabe como serão feitas essas ações pela ANTT sobre o autorregulador ferroviário, até porque a sua competência mediadora/arbitral foi mantida, e nada impede que a agência mantenha suas resoluções regulatórias vigentes sobre a prestação dos serviços ferroviários. Em muitos países, as regulamentações governamentais complementam a autorregulação para garantir a conformidade dos requisitos legais e a segurança operacional.
Os benefícios da autorregulação são decorrentes da expertise técnico-operacional dos operadores ferroviários para elaborarem as normas e, assim, evitarem grandes quantidades de conflitos e judicializações. A autorregulação poderá tornar mais ágil o processo de tomada de decisões, tornando melhores os serviços prestados e atendendo às necessidades dos clientes. Além disso, haverá estímulo à inovação e ao desenvolvimento tecnológico do setor ferroviário, visto que as empresas terão liberdade para explorar novas soluções e investir em tecnologias avançadas que possam aprimorar a segurança, a eficiência e a sustentabilidade das operações, tornando o transporte ferroviário mais competitivo em relação aos demais modos de transporte.
Ao mesmo tempo, há riscos que precisam ser mitigados, como a imposição pelo autorregulador de barreiras de entrada a novos entrantes, a partir da edição de normas técnico-operacionais cumpríveis apenas pelos grandes operadores ferroviários, e a criação de dificuldades para o compartilhamento da infraestrutura ferroviária, em questões relacionadas ao direito de passagem e ao tráfego mútuo.
Restam muitas dúvidas, mas chama a atenção a indefinição de como será exercida simultaneamente a autorregulação sobre as ferrovias sob concessão federal, de propriedade da União, e as ferrovias sob autorização, de propriedade privada.
Em última análise, as operadoras ferroviárias, concessionárias e autorizatárias, de forma conjunta e compromissada, precisam se unir para colocarem em prática a autorregulação ferroviária, dado que, como diz aquele velho ditado, ou você tem uma estratégia própria ou então é parte da estratégia de alguém, e esse alguém continuará sendo o governo federal, caso não seja implementada a entidade autorregulatória.
Soa bastante estranho a possibilidade de criação de uma entidade autorregulatória, na medida em que envolverá operadoras de segmentos ferroviários de uso exclusivo de seus empreendedores (autorizações), mas com interface operacional compulsória com trechos ferroviários já concedidos (concessões com contratos, regras e normas vigentes),reguladas por entidade pública (agências).
É necessário discutir essa modelagem “hibrida” antes de surgirem conflitos previsíveis adiante.
Penso que, diante dos 17 ODS – OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL do PNUD, o movimento atual de autorregulação da infraestrutura ferroviária deveria se comprometer em garantir, efetivamente, o cumprimento dos seus principais pilares sem uma visão maniqueísta que divide em poderes opostos e incompatíveis os interesses das concessionárias e os de Desenvolvimento econômico do país, Sustentabilidade Ambiental e Inclusão Social.