Pauta para o país é a integração, diz especialista da Fundação Dom Cabral

Valor Econômico – Um país de dimensões continentais, com predominância de terras produtivas contínuas, deveria se pautar pela integração entre todos os meios de transporte, na avaliação do diretor do núcleo de logística, supply chain e infraestrutura da Fundação Dom Cabral, o engenheiro civil Paulo Resende, um dos mais respeitados pesquisadores dos modais de transportes no Brasil.

Doutor em planejamento de transportes e logística pela Universidade de Illinois, Estados Unidos, ele identifica conceitos antigos e padrões políticos que levaram o país ao ponto de ter a matriz de transportes “mais desequilibrada do mundo”.

Um dos atrasos, diz ele, é “uma cultura ultrapassada que coloca a engenharia em permanente confronto com o meio ambiente e o desenvolvimento social”. Falta também fundamento técnico ao planejamento e às decisões de investimento, muitas vezes pautadas por interesses políticos. Um maior equilíbrio na matriz de transportes pode significar uma economia de R$ 20 bilhões por ano no custo logístico brasileiro, diz Resende.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O Brasil é o único país de dimensões continentais que tem nas rodovias seu principal meio de transporte. Como se explica isso?

Paulo Resende: O Brasil, infel izmente, tomou decisões nessa área sem um planejamento de longo prazo. Já tivemos uma malha ferroviária de grande capilaridade, inclusive para o transporte de pessoas, mas ela foi completamente substituída por rodovias ao longo de quatro décadas. Um país de dimensões continentais, com uma predominância de terras produtivas contínuas, deveria se pautar pela integração entre todos os meios de transporte. Em vez disso, temos a predominância de um modal que, de todos, é o menos indicado para produtos de baixo valor agregado e peso bruto alto em longas distâncias.

Valor: Como avalia os projetos das ferrovias em implantação, como a Fico e a Fiol? E a Ferrogrão, que ainda não saiu do papel pelas ameaças ambientais que representa?

Resende: Avalio que são projetos de extrema importância para o preenchimento do vazio de oferta ferroviária, principalmente em áreas de grande produção de grãos. Eles serão capazes de aumentar a participação ferroviária dos atuais 20% para algo em torno de 28% a partir de 2035. Acontece que o Brasil é um país atrasado no conceito de alinhamento entre engenharia e meio ambiente. Criamos uma cultura ultrapassada que coloca a engenharia em permanente confronto com o meio ambiente e o desenvolvimento social. O que existe de mais avançado no mundo é a utilização das intervenções conscientes da engenharia para garantir a preservação do meio ambiente e vice-versa. Se tivermos que mudar o traçado da Ferrogrão para reduzir seus impactos ambientais, tudo bem. Mas não devemos manter um vazio ferroviário na maior fronteira de produção de grãos do mundo. Um maior equilíbrio na matriz de transportes pode significar uma economia de R$ 20 bilhões por ano no custo logístico brasileiro, incluindo as potenciais reduções em estoques de segurança nas linhas de produção.

Valor: Apostar nas concessões privadas para a modernização da matriz de transportes é suficiente para destravar os projetos mais ambiciosos? O que o governo poderia fazer para atrair mais recursos?

Resende: Em primeiríssimo lugar, o investimento privado na infraestrutura de transportes é condição essencial para o aumento da oferta. Quando se tem demanda, a infraestrutura responde a ela com garantias de retorno do investimento. Nesse contexto, as concessões, autorizações e até PPPs [Parcerias Público-Privadas] com maior investimento privado têm sua participação justificada e não se pode ter “raiva do lucro”, principalmente devido às necessidades de cobrança de pedágios. Como a infraestrutura também é indutora do crescimento devido aos seus altos efeitos multiplicadores, um projeto que não apresenta demanda no momento pode estimular a criação de riquezas e empregos no médio prazo, justificando investimentos públicos iniciais. E para atrair novos recursos, o governo poderia lançar títulos públicos para financiar a infraestrutura, como alguns países já fizeram, com bons resultados.

Valor: Quanto tempo será preciso esperar para termos de volta os trens de passageiros cortando o país?

Resende: Não precisaríamos esperar mais. Basta aproveitar linhas curtas para conexões interurbanas, reativar linhas com baixa demanda de cargas para uso múltiplo segregado ou compartilhado e incentivar trens turísticos. Acontece que o país vive de defesas de posições sem qualquer fundamento técnico, e políticos e associações que defendem esse ou aquele modal de transportes não se preocupam com o bem-estar social. Esses não lideram, mas tentam impedir o futuro.

Valor: A conservação das rodovias brasileiras é outro desafio. Qual é o investimento anual necessário para mantê-las em bom estado?

Resende: Calcula-se um valor anual de R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões nas rodovias federais para uma manutenção satisfatória, que vá além das operações tapa-buracos. Envolve a implantação de terceira faixa em pequenos trechos, áreas de escape para zonas de maior risco de acidentes, sinalização horizontal e vertical moderna que garanta fluidez e baixo risco, inovações tecnológicas com oferta de acesso à internet etc. Tudo isso poderia ser resolvido com bons contratos de manutenção pela iniciativa privada. Acontece que esses contratos são uma ameaça a empresas que vivem de um histórico de relações não republicanas com os governos.

Valor: O que falta para a BR do Mar deslanchar e a navegação de cabotagem ser mais utilizada no país?

Resende: Não se faz transporte de cabotagem onde exista concorrência com a navegação de longo percurso. A costa brasileira é formada de portos que poderiam se dedicar ao atendimento da cabotagem sem a concorrência com portos estrategicamente posicionados para o comércio exterior. O que falta para a navegação de cabotagem deslanchar é uma visão estratégica de logística integrada para um porta a porta com tarifas competitivas. A integração bem planejada entre rodovias, ferrovias e hidrovias é a melhor saída.

Valor: O atual governo é contra a privatização dos portos, incentivada na administração passada. Qual a sua opinião a respeito?

Resende: Sou completamente contra posições extremistas e tomadas a partir de conceitos antigos ou padrões políticos sem qualquer fundamento técnico. A infraestrutura de transportes tem dois papéis, e os portos são grandes exemplos de indução do crescimento se ganharem eficiência logística e reduzir custos. Ao evitar a privatização estamos garantindo algum desses papéis? Provavelmente nenhum deles, mas sim de um terceiro que se solidificou ao longo dos séculos provocando atrasos enormes no país, que é justamente o domínio político de zonas portuárias a favor de interesses, digamos, menos técnicos.

Fonte: https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/revista-infraestrutura-e-logistica/noticia/2023/09/29/pauta-para-o-pais-e-a-integracao-diz-especialista-da-fundacao-dom-cabral.ghtml

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