O Globo – Primeiro passo: embarcar no trem. Segundo passo: cair na cama. Terceiro passo: acordar no destino. Para muitos, pode até parecer o sonho de um passado distante, mas a tendência está ganhando espaço na Europa. Embora muitas linhas férreas noturnas tenham sido desativadas com a ascensão das aéreas de baixo orçamento, elas estão ressurgindo graças, em parte, à maior conscientização do impacto ambiental dos voos, mas também ao maior interesse nas viagens lentas.
No início deste ano, uma nova conexão Paris-Berlim chamou minha atenção — um Nightjet operado pela austríaca ÖBB. A retomada da rota noturna rendeu manchetes ao reiniciar os trabalhos em dezembro, depois de mais de 13 anos de ausência, tendo o ministro dos Transportes francês na época, Clément Beaune, entre os primeiros passageiros.
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— Foi magnífico. Precisamos de mais projetos positivos, ecológicos e europeus como esse — disse ele na chegada.
Um hotel sobre os trilhos
A maioria dos três trens semanais em cada direção já estava quase cheia quando comprei meu bilhete, quase com um mês de antecedência. Os mais baratos são as poltronas básicas, que encontrei a partir de 35 euros; os couchettes, a partir de 50 euros, dão direito a um beliche em um compartimento compartilhado de quatro ou seis pessoas; além deles, há a opção “leito”, a partir de 80 euros, com uma cama mais larga e um espaço dividido com outros dois viajantes. Mas resolvi extrapolar, reservando um compartimento privado, com banheiro e chuveiro próprios, a partir de 260 euros (as passagens com reembolso parcial e/ou integral custam ainda mais).
Considerando o preço e o aspecto ambiental, é meio estranho que os bilhetes tenham de ser baixados e impressos. Também achei a navegação do sistema de reservas da Nightjet complicada e pobre em informações. Nas semanas anteriores à partida, recebi alguns torpedos da ÖBB, primeiro para me avisar que o horário de partida, 20h18, tinha mudado para as 19h40; depois, que tinha voltado a ser o original; e, em seguida, que tinha ficado mesmo para as 19h40.
Tirando isso, tudo parecia estar andando nos trilhos (sem trocadilhos), e, ao cair de uma tarde de início de primavera, embarquei no Nightjet na Berlin Hauptbahnhof, principal estação férrea da cidade. Moderna, a einkaufsbahnhof, ou “estação de compras” incluía de tudo, desde padarias e confeitarias até supermercados, com vários restaurantes, bares e lounges. Matei a meia hora de espera pelo embarque bebericando uma cerveja, pensando no luxo da viagem de 14 horas que teria pela frente.
Reformado, sim; novo, não
Essa expectativa se desfez assim que subi a bordo. Embora a linha Paris-Berlim seja promovida como uma rota renovada, o trem em si era velho, e meu compartimento dava mostras dos anos de desgaste. Apesar de destinado a uma pessoa só, tinha três assentos, todos finos e duros feito tábua de passar.
O compartimento era pequeno e o tampo da mesa quase bloqueava a porta do banheiro, exigindo passos de uma dança maluca para eu poder entrar.
Minutos depois, veio um funcionário para pegar a passagem que eu imprimira e explicou que ela incluía duas garrafas d’água. Seriam servidas duas refeições — mas, acompanhando o clima retrô, o pagamento teria de ser feito em dinheiro vivo.
— Desculpe, mas a empresa não nos fornece maquininhas — completou.
Em seguida, ele chegou com uma versão sem graça do spaetzle alemão. Quando terminei, ele voltou para tirar a bandeja e o tampo, embutindo as poltronas e rapidamente arrumando a cama que estava escondida atrás de si.
Resolvi me aventurar no banheiro, dando graças às dezenas de vídeos sobre a vida no trailer que me prepararam para um chuveiro que fazia as vezes de torneira na pia, girando para liberar espaço quando o passageiro estava tomando banho. Uma cortina, que sem uso ficava escondida, evitava os respingos para fora. O chuveiro era alto o bastante para conter minha altura (1,87 metro), embora meus ombros e cotovelos tenham ficado ofendidos com a estreiteza. Por incrível que pareça, a pressão da água era bem decente, com um volume de água quente mais que suficiente.
Com a tela abaixada sobre a janela, o compartimento já ficava bastante escuro, sem a necessidade da máscara de dormir de cortesia; os outros mimos se resumiam a dois wafers e um ovo de chocolate, um par de chinelos e protetores auriculares.
Apesar do conforto surpreendente e do comprimento adequado da cama, não consegui dormir direito e me levantei cedo para perceber que o trem tinha parado na cidade francesa de Estrasburgo. Não demorou muito para partirmos, e logo em seguida um novo camareiro trouxe o café da manhã: café, pãezinhos, cream cheese, manteiga, geleia e uma embalagem de patê embrulhada em plástico que, sem faca, penei para abrir. Também não consegui muita coisa do Wi-Fi gratuito.
Ideal para os jovens
Depois da refeição, saí para percorrer o trem de ponta a ponta e ver como estavam os outros passageiros. No que a Nightjet chama de “vagão de poltronas” e “vagão sentado”, duas mulheres de Rennes, na França, estavam voltando da Polônia com as passagens mais baratas do trem.
— Pegamos o assento e não a cama, e não é muito confortável. Não tem muito espaço. Não foi feito para o pernoite.
Os bancos tinham um recurso oculto: uma extensão do descanso de perna para os que ficavam um de frente para o outro, dando forma a um tipo de beliche. Para o viajante jovem, esse tipo de arranjo noturno talvez até funcione, mas, para o passageiro de meia-idade como eu, certamente resulta em anos de fisioterapia.
Em um dos compartimentos dormitório, Mario Cibulla, de 61 anos, disse ter achado a viagem noturna agradável, tendo conseguido descansar muito mais do que eu. Era a primeira vez que, ao lado da mulher, também berlinense, pegava o trem noturno.
— Não dormi oito horas, talvez umas cinco, mas é melhor do que nada — comentou.
A conexão de internet tampouco funcionara para ele. E teve também a questão da comida: preferiu passar o spaetzle e pegar a única outra opção, espaguete à bolonhesa, que reprovou fortemente. Apesar disso, continuava entusiasmado.
— Para um casal, o preço é bem razoável, se você pensar que só o trecho de Berlim para Paris sai entre 200 e 300 euros para os dois. Sai um pouco mais caro que um voo econômico, mas, como inclui o pernoite, você economiza uma diária de hotel. Sem contar também que é uma opção ecológica.
A aprovação era menos óbvia no vagão de “couchettes”. Em um dos compartimentos, quatro jovens pareciam ter se tornado amigos da noite para o dia — a ponto de deixar a porta aberta, como se quisessem convidar a visitas. Dois dedos mais alto que eu, Thibaut Ratsi, de 32 anos, confessou ter achado a cama apertada.
— Até deu para me esticar, mas os dedos dos pés ficaram para fora.
Theresa Kuttner, austríaca, estava viajando com o luxemburguês Matthieu Plein, ambos de 26 anos. Guillaume Olivier, outro francês viajando solo, tinha 24. O quarteto passou boa parte da viagem engajado em um bate-papo poliglota. Para os quatro, as grandes vantagens da viagem noturna são a responsabilidade ambiental e o preço acessível, além do ambiente.
— Você economiza a grana da diária do hotel, fica sossegado. E quando acorda já está no centro, não na periferia, como acontece com a maioria dos aeroportos — comentou Plein.
— Sem contar que é um ponto de encontro. O lance mais incrível do Nightjet é que você acorda, olha pela janela e dá de cara com um cenário que parece coisa de filme — completou Kuttner.
Jornada concluída
Voltei para meu compartimento pouco antes de pararmos na estação final, Paris Est. A viagem parecia coisa de cinema, concordo. Embora não tenha sido perfeita, o trem noturno tem lá seu charme, além de tudo que vemos pela janela. Para alguns, é um espaço para fazer novas amizades; para outros, a chance de ficar sozinho. Ou de o casal ficar sozinho, mas junto um do outro.
Para todos a bordo, porém, o trem foi uma experiência única, um meio de transporte romântico que saiu de moda e está ganhando nova importância. Eu não sabia se o preço alto da minha passagem se justificara, mas, ao contrário da maioria dos voos curtinhos, certamente me daria bastante assunto quando os amigos perguntassem como tinha sido a viagem.
Ou pelo menos foi o que achei ao pegar minha sacola e sair, de olhos cansados, no meio do turbilhão de Paris — uma cidade de sonho que, naquela manhã clara de primavera, parecia mais romântica do que nunca.
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