Por dentro da ‘Força Ferroviária Um’: os trens que levam líderes mundiais para a Ucrânia

Estadão – Nos quase três anos desde que a Rússia invadiu a UcrâniaUrsula von der Leyen, a principal autoridade da União Europeia, se acostumou à viagem de trem noturno de 10 horas até Kiev. Ela passa o tempo se preparando para reuniões e lendo livros a respeito da Ucrânia, quando não está tentando dormir um pouco.

Ursula von der Leyen visitou a Ucrânia oito vezes desde o início de 2022. Então, quando ela vê imagens de outros líderes estrangeiros em Kiev, como o Secretário de Estado americano Antony Blinken, ela consegue entender muito bem o cansaço deles.

“Quando vejo o olhar cansado, sei que ele teve uma noite de sono ruim com os trilhos fazendo tuk-a-tuk-a-tuk-a-tuk”, disse von der Leyen a respeito de Blinken durante uma viagem a Kiev em setembro.

Com os voos civis para a Ucrânia suspensos por motivos de segurança, os trens se tornaram o principal meio de transporte no país devastado pela guerra. Nos dois anos e meio mais recentes, milhões de ucranianos confiaram na vasta rede ferroviária do país para entrar e sair, muitas vezes suportando longas viagens em cabines-leito.

Líderes mundiais que visitaram a Ucrânia tiveram uma experiência semelhante — embora com mais conforto. Desde os primeiros meses da guerra, a Ukrzaliznytsia, a ferrovia nacional ucraniana, implantou vagões VIP para transportar dignitários para dentro e para fora do país. Eles são equipados com dormitórios privativos, uma sala de conferências e uma cozinha onde os atendentes preparam as refeições.

Esses trens especiais se tornaram uma característica duradoura da guerra, uma experiência em comum para as dezenas de líderes que estiveram na Ucrânia, incluindo o presidente americano Joe Biden, o chanceler Olaf Scholz da Alemanha e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Todos pegaram o trem à noite, com as cortinas das janelas fechadas para minimizar a chance de detecção por drones russos. Todos dormiram nas mesmas cabines, embalados pelo barulho dos trilhos.

Oleksandr Shevchenko, vice-chefe dos serviços de passageiros da Ukrzaliznytsia, elogiou a capacidade de sua ferrovia de transportar tantos líderes mundiais em longas viagens noturnas e atender da melhor forma possível às necessidades deles. “Nós nos tornamos pioneiros nisso”, disse ele.

Mas essas viagens foram mais do que apenas um feito logístico. Vendo uma oportunidade nas longas horas que autoridades estrangeiras passam a bordo do trem — muitas vezes mais do que seu tempo de visita — as autoridades ucranianas transformaram a viagem em uma ferramenta para conquistar sua simpatia.

No trem, autoridades recebem pratos ucranianos tradicionais e livros contando a história da Ucrânia e da luta em tempos de guerra em um esforço para aprofundar sua compreensão do país. Após acordos importantes serem alcançados em Kiev, autoridades ucranianas deixam notas de agradecimento nos vagões.

Às vezes, os gestos são mais pontuais. No início do ano passado, enquanto a Ucrânia pressionava seus aliados ocidentais, incluindo a Finlândia, para fornecer tanques Leopard, os membros da tripulação do trem usaram cachecóis com estampa de leopardo durante uma visita do presidente finlandês.

“Sempre que a Ucrânia precisa pedir algo a um líder estrangeiro, nós, em colaboração com o Ministério das Relações Exteriores, tentamos dar algumas dicas”, disse Shevchenko com um sorriso.

Com as negociações de paz parecendo mais prováveis conforme a guerra se arrasta, espera-se um número muito maior de diplomatas a bordo dos trens VIP, que foram usados mais de 1.000 vezes desde o início da guerra.

“O trem é muito mais do que um sistema de transporte — ele também se tornou uma ponte para a diplomacia”, disse Annalena Baerbock, a ministra das Relações Exteriores alemã, que visitou a Ucrânia oito vezes durante a guerra.

O projeto especial do trem, chamado de “Diplomacia de Ferro” pela Ucrânia, começou com uma ligação tarde da noite para Shevchenko em 14 de março de 2022. A invasão em grande escala da Rússia estava em sua terceira semana e os primeiros-ministros da Polônia, República Tcheca e Eslovênia queriam visitar Kiev para mostrar seu apoio.

Com a tarefa de organizar a viagem, Shevchenko correu para Lviv, uma cidade perto da fronteira polonesa, onde ele e sua equipe montaram um pequeno trem de quatro vagões e uma locomotiva. Eles então partiram para encontrar os primeiros-ministros do outro lado da fronteira, na Polônia, o ponto de partida do trem.

A primeira viagem foi “um pouco caótica”, disse Shevchenko em uma entrevista na principal estação de trem de Kiev, um grande edifício de estilo barroco com um grande corredor com colunas e lustres. Equipes de segurança subiram a bordo para planejar sua chegada a Kiev, que ainda estava parcialmente cercada por forças russas, incluindo a definição do posicionamento de atiradores na estação de trem.

Com o tempo, a Ukrzaliznytsia aperfeiçoou os detalhes, disse ele. Duas rotas alternativas são sempre preparadas em caso de ataques russos. Quando Biden visitou Kiev no ano passado, dois trens idênticos circulavam simultaneamente em rotas diferentes “para que ninguém soubesse qual era o trem fantasma e qual era o verdadeiro”, disse ele.

O trem que transportava Biden foi apelidado de “Força Ferroviária Um” pelas autoridades ucranianas.

Para transportar autoridades estrangeiras, a Ucrânia reutilizou vagões ferroviários de luxo, originalmente projetados para passageiros ricos que os alugavam para viagens pelo país antes da guerra. Vagões-leito padrão são acoplados aos vagões VIP para transportar o restante da delegação.

Durante uma visita a Kiev em outubro, o Secretário de Defesa americano Lloyd J. Austin III viajou em um vagão com painéis de madeira e uma sala de conferências equipada com uma mesa de madeira polida e cadeiras de estilo vitoriano. Tapetes verdes e dourados cobriam o chão. No final do vagão havia um quarto privativo, com um banheiro privativo revestido de azulejos azuis.

“Queremos que nossos hóspedes fiquem o mais confortáveis possível”, disse Zoya Bohach, a comissária de bordo naquela viagem. Em uma tarde recente, ela estava preparando o mesmo vagão antes de uma visita de Howard G. Buffett, um filantropo que administra uma fundação multibilionária, arrumando a mesa da sala de conferências com seis conjuntos de pratos brancos com detalhes em relevo.

Em uma mesa lateral, livros aparentemente escolhidos para evocar empatia pela situação difícil da Ucrânia aguardavam Buffett: uma compilação dos discursos de Zelenski durante a guerra e um relato das experiências das crianças durante a guerra.

A decoração dos trens pode ser luxuosa, com a suíte adornada com detalhes dourados por toda parte, das paredes às luminárias. Durante uma viagem conjunta à Ucrânia em junho de 2022, os líderes da Alemanha e da Itália provocaram o presidente francês Emmanuel Macron falando em seu alojamento aparentemente superior. “O meu é muito menos luxuoso”, brincou Mario Draghi, primeiro-ministro da Itália na época, para um Macron sorridente.

Nem todos os políticos viajam nos trens turbinados, porque há apenas um punhado deles. Gabrielius Landsbergis, ministro das Relações Exteriores da Lituânia, que fez 11 viagens à Ucrânia durante a guerra, viaja em um vagão-leito padrão reservado para sua delegação.

Landsbergis usa as longas viagens de trem para se preparar para suas reuniões no dia seguinte, falando com assessores em cabines minúsculas.

“Algumas das minhas melhores noites de sono foram no trem”, disse Landsbergis. “Talvez seja o balanço.”

Magdalena Andersson, ex-primeira-ministra da Suécia, disse que durante a longa viagem a Kiev em meados de 2022, ela percebeu o estresse que os ucranianos estavam passando, sabendo que um ataque poderia acontecer a qualquer momento.

“Viajar por um país em guerra, é claro, nos dá muito o que refletir quando passamos tantas horas sem conexão”, disse ela.

Ela disse que foi fundamental ver com seus próprios olhos uma vala comum em Bucha, perto de Kiev, e evidências de outros horrores cometidos pelas forças russas. “Voltando para casa, pude falar disso com os cidadãos da Suécia de uma forma que eu não teria conseguido fazer se não tivesse estado lá.

Fonte: https://www.estadao.com.br/internacional/por-dentro-da-forca-ferroviaria-um-os-trens-que-levam-lideres-mundiais-para-a-ucrania/

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