Projeto do corredor Fico-Fiol e o Porto Sul é inviável e falho

Valor Econômico (Artigo) – Em janeiro deste ano, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) abriu audiência pública para a concessão única da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO 1), em implantação no Mato Grosso e Goiás pela Vale como parte da outorga pela renovação antecipada da Estrada de Ferro Vitória-Minas; e de dois dos três trechos da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) na Bahia, denominados Fiol 2 (em construção com recursos federais) e Fiol 3 (em estudos). A racionalidade e viabilidade desse empreendimento estão, contudo, em questão, pois a Fico-Fiol é parte integral de um corredor ferroviário que se conecta a uma ferrovia incompleta e cuja execução está suspensa pelo concessionário (Fiol 1), que por sua vez desemboca num porto inexistente (Porto Sul), projeto greenfield a cerca de 30 km ao norte de Ilhéus. E mais: nenhum dos componentes do corredor – Porto Sul, Fiol 1, 2 ou 3 – resistiria a uma análise custo-benefício, seja pela escassez de demanda alocável, gastos de capital muito elevados, e ainda externalidades negativas não facilmente compensáveis no âmbito ambiental (particularmente do Porto Sul e da Fiol 1).

A Fiol 1 – uma ferrovia conectando a cidade de Caetité, na Bahia, e o projeto Porto Sul – foi licitada em 2021 com cerca de 72,5% de sua via permanente construída. A concessão foi ganha pela Bahia Mineração S/A (Bamin), controlada pela mineradora Eurasian Resources Group, do Cazaquistão, e detentora de reservas de minério de ferro na região de Caetité. A Bamin também obteve a concessão de construir e explorar o Porto Sul, primordialmente para exportar o minério produzido pela empresa. A complexidade, os custos e riscos associados à Fiol 1 e ao Porto Sul foram em grande medida subestimados. Resultado: a Fiol 1 está paralisada desde o final de março, após avançar somente 2,5% desde a assunção da concessão. Já o projeto do Porto Sul não foi adiante, inclusive por ser construído por enrocamento em ilha artificial a cerca de 3 km da costa, além do impacto ambiental adverso na região costeira. Igualmente se subestimou os obstáculos relacionados ao trajeto da Fiol 1 em região ambientalmente sensível, por atravessar área preservada da Mata Atlântica e cruzar áreas úmidas, a exemplo do entorno do rio Almada.

A Fiol ilustra as deficiências no processo de planejamento de transportes no Brasil. Após mais de uma década sendo priorizada nos planos logísticos e setoriais e nos programas de investimento, o empreendimento tem sido construído de forma fragmentada sem que tenha sido comprovado sua efetiva racionalidade. O processo de planejamento, por sua vez, não levou em consideração as relações de complementariedade estrita entre ferrovia e porto – na realidade, nem no âmbito do planejamento, nem tampouco na modelagem leva-se em consideração a restrição de capacidade portuária, pois o porto inexiste (!).

O avanço – aqui se insiste, sem racionalidade – se dá em múltiplas frentes: a atual tentativa do governo de transferir o complexo Fiol 1-Porto Sul da Bamin para um terceiro, com potencial injeção significativa de recursos públicos; a continuação da alocação de recursos orçamentários da União para a implantação da Fiol 2, entre Barreiras e Caetité, apesar da paralisação da Fiol 1 e inviabilidade do Porto Sul; a elaboração de um novo projeto para a Fiol 3 cujo traçado foi recentemente alterado (levando ao abandono do projeto executivo anterior), conectando Correntina (BA) e Mara Rosa na Ferrovia Norte-Sul (FNS) em Goiás, e daí se estendendo ao oeste para a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico 1); e finalmente a intenção do governo federal de licitar um corredor que não se sustenta (Fiol-Porto Sul) em conjunto com um trecho ferroviário potencialmente viável (Fico 1).

Vale sublinhar a magnitude dos recursos públicos despendidos na Fiol, o tamanho da brecha para viabilizar o empreendimento e a falta de racionalidade econômica frente aos seus custos de implantação. No período 2010-24, os gastos de capital do setor público com a Fiol 1 e a Fiol 2, a preços de dezembro de 2024, somaram cerca de R$ 11 bilhões (respectivamente R$ 5,98 bilhões e R$ 5,04 bilhões), enquanto o setor privado investiu estimados R$ 0,7 bilhões com a Fiol 1 e o Porto Sul; e ainda seriam necessários ao menos mais R$ 44 bilhões para finalizar o corredor (R$ 3,76 bilhões com a Fiol 1, R$ 7,21 bilhões com a Fiol 2, R$ 23,46 bilhões com a Fiol 3 e R$ 9,70 bilhões com o Porto Sul). Não há qualquer justificativa para gastos dessa magnitude.

Parece ser agora imperativo rediscutir o corredor Fiol-Porto Sul e assegurar que o empreendimento e seus componentes passem pelo crivo de uma análise de custo-benefício elaborada de forma íntegra, e que recursos públicos escassos não sejam alocados para obras cuja taxa social de retorno é – com toda a probabilidade – negativa. Mais: é igualmente imperativo que um projeto em implantação potencialmente viável e atrativo (Fico 1), não seja licitado com outro de viabilidade mais do que questionável, impedindo usos mais produtivos para a Fico 1.

Finalmente, é igualmente importante que se avalie como lidar com a infraestrutura de via permanente já construída e com custos afundados extremamente significativos. Uma alternativa é conectar a Fiol 1 à FCA na cidade de Brumado, a menos de 100 km de Caetité, exigindo da VLI (controladora da FCA) melhorias significativas para aumentar a produtividade ferroviária no trecho Brumado-Salvador, em bitola que se revele a mais econômica. Se o projeto do pátio de transbordo em Brumado já existe para ser implantado, ainda mais importante é o fato da FCA já deter os direitos e a infraestrutura para conduzir a carga para os portos já existentes e em operação na Baía de Todos-os-Santos (BTS), cujo calado natural é suficiente para abrigar navios de longo curso e cujo conjunto de portos – incluindo Salvador – será, com toda a probabilidade, o principal hub portuário no Nordeste nas próximas duas décadas. Do ponto de vista do Estado da Bahia, essa solução, que utiliza recursos de outorga da antecipação da renovação da concessão da FCA e direciona a conexão ferroviária modernizada para a BTS, faz possivelmente o seu melhor uso.

Essa solução, porém, necessita ser estudada com rigor e sua viabilidade econômica comparada com a alternativa conectando Jequié (mais ao leste de Brumado) com a Baía de Todos-os-Santos. Jequié teria a clara vantagem de ser mais próxima aos portos da BTS e num ponto de conexão com a Fiol 1 cuja via permanente até Caetité já está em grande medida construída. A desvantagem é o fato de Jequié-BTS ser um projeto greenfield, cujos custos e benefícios ainda necessitam ser estimados. De qualquer forma, enxergamos como imperativo procurar uma solução para um problema que está posto, evitando que em anos vindouros a Fiol 1 em particular – e a Fiol 2 – se transformem em investimentos sem perspectiva de oferecer os serviços para o qual foram e têm sido gastos recursos consideráveis. A alternativa discutida está distante de apagar os erros cometidos, mas tão somente dotar de certa racionalidade ex-post o empreendimento.

Claudio R. Frischtak é economista e sócio-fundador da Inter.B Consultoria.
Francisco Caputo é graduando em Economia pela UFRJ.

Fonte: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/projeto-do-corredor-fico-fiol-e-o-porto-sul-e-inviavel-e-falho.ghtml

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