Justiça reverte sanções ambientais sem prova da intenção do dano

Valor Econômico – Decisões de diversos tribunais estaduais têm revertido sanções ambientais que não apresentam provas suficientes de que a parte acusada tenha sido diretamente responsável pelo dano causado. A questão é importante porque, embora exista entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a necessidade de comprovação, os autos de infração têm sido lavrados com base em mera presunção, segundo advogados especialistas em Direito Ambiental.

No ano de 2019, a 1ª Seção do STJ firmou jurisprudência no sentido de que, nos casos de dano ambiental, a responsabilidade administrativa é subjetiva (EREsp 1318051). Na prática, isso quer dizer que é preciso apresentar provas do nexo causal entre a conduta e o dano, além de demonstrar que a conduta foi efetivada pelo transgressor.

No caso, o relator, ministro Mauro Campbell Marques, destacou que a sanção ambiental administrativa “deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano”.

A partir da consolidação desse entendimento, o próprio Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) editou o Parecer nº 4, em 2020, assentando que a responsabilidade ambiental administrativa é de natureza subjetiva e demanda “a existência de dolo ou culpa do agente para caracterização da infração ambiental”.

Alguns órgãos estaduais, no entanto, dizem os advogados, continuaram autuando pessoas e empresas por danos ao meio ambiente sem atender a esse princípio jurídico. A sanção é aplicada independentemente da constatação de culpa do agente (responsabilidade objetiva em vez de subjetiva). Isso fez com que os casos tivessem que ser resolvidos no Judiciário.

O jurista Édis Milaré, sócio fundador do escritório Milaré Advogados, especializado em Direito Ambiental, explica que, para a caracterização da responsabilidade subjetiva, é essencial a existência de um comportamento ilícito, seja por ato ou omissão, que tenha sido praticado pessoalmente pelo agente ou por seus representantes.

Em 2024, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) anulou a cobrança de uma multa ambiental de R$ 400 mil por desmatamento de vegetação do Cerrado no município de Brejolândia. O caso estava prescrito, mas os magistrados destacaram que “o caso concreto refere a pretensão anulatória de auto de infração ambiental de natureza jurídica administrativa, a exigir, portanto, a demonstração de todos os elementos da responsabilização subjetiva” (processo nº 8117370-74.2022.8.05.0001).

No Rio Grande do Sul, uma autuação por danificação de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente (APP) foi anulada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). A decisão apontou que, “não comprovada a participação do autor, não é possível que lhe seja estendida a responsabilidade pelo cometimento do ilícito ambiental” (processo nº 5002653-05.2019.4.04.7103).

Em outro caso, dessa vez no Paraná, não foi possível comprovar se o transbordamento de esgoto era de responsabilidade de uma moradora ou de um prédio público vizinho, já que as duas edificações compartilhavam a mesma caixa de esgoto. Diante disso, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) cancelou a inscrição dela na dívida ativa pelo não pagamento de multa (processo nº 0042056-58.2018.8.16.0014).

A situação de insegurança jurídica dificulta o planejamento financeiro dos empresários, afirma Renata Franco de Paula Gonçalves Moreno, sócia e fundadora do escritório Renata Franco Sociedade de Advogados. Para ela, a incerteza também acaba desestimulando o empreendedorismo. “Uma empresa enorme ainda tem recursos para lidar com as autuações, mas quando se trata de pequenos empreendimentos, empresas familiares, fica uma sensação de injustiça”, aponta.

Recentemente, a 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) anulou um auto de infração ambiental e ordenou a restituição de um trator apreendido sob acusação de supressão de vegetação nativa em área protegida. No caso, embora o alvo da sanção fosse o dono do trator usado para a prática do ilícito ambiental, os desembargadores entenderam que “não há prova de que ele tinha ciência ou assumiu o risco da ocorrência dos danos ambientais narrados” (processo nº 1006402-46.2022.8.26.0152).

Sobre o caso, a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado afirmou, por meio de nota, que o auto de infração no processo foi lavrado antes da consolidação do entendimento do STJ e que, desde então, atualizou os procedimentos.

Uma propriedade agrícola que explora cana-de-açúcar no interior paulista foi autuada pela Cetesb por causa de um incêndio de trecho de Mata Atlântica em estágio inicial de regeneração. A 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do TJSP anulou os autos de infração, apontando que não houve prova de que a usina tenha iniciado o incêndio. “O processamento da cana-de-açúcar cozida tem um custo mais elevado que o da crua, de maneira que a prática de queimada acarreta, ao menos em tese, prejuízo para a usina açucareira”, apontou a relatora, Isabel Cogan, no acórdão (processo nº 1013587-19.2022.8.26.0320).

Por meio de nota, a Cetesb afirmou que “em casos em que há interpretações distintas por parte do Poder Judiciário, a companhia cumpre integralmente as decisões que já tenham transitado em julgado”.

Édis Milaré pondera que a dificuldade de aplicação da responsabilidade subjetiva – que exige a demonstração do nexo causal entre conduta e dano – também é decorrente da natureza do auto de infração. Isso porque o ato administrativo (do Ibama, Cetesb ou outros órgãos ambientais) tem presunção de legitimidade, o que acaba por justificar a autuação. Nessa situação, diz ele, a responsabilidade de provar a nulidade do ato cabe ao suposto infrator, o que o leva ao Judiciário.

Os demais órgãos de fiscalização ambiental envolvidos nos casos citados foram procurados pelo Valor, mas não se manifestaram até o fechamento da reportagem.

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/06/27/justica-reverte-sancoes-ambientais-sem-prova-da-intencao-do-dano.ghtml

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