O Globo – “Passageiros, nossa composição se destina a Belford Roxo”. É assim que o maquinista anuncia a partida do trem da plataforma 11, na Central do Brasil, para a cidade da Baixada Fluminense. Após cerca de 15 minutos de viagem e quatro estações, basta olhar pela janela, na altura da estação Jacarezinho, para observar pontos de venda de drogas funcionando ao lado das plataformas de embarque. Mas essa não é uma situação isolada na malha ferroviária que liga o Centro à Zona Oeste do Rio e a outros 11 municípios do estado.
Durante três semanas, entre os dias 6 e 25 de junho, O GLOBO viajou nas composições da SuperVia, concessionária que opera o serviço de transporte coletivo ferroviário de passageiros, percorrendo cinco ramais ferroviários e três extensões. No caminho que se estende por 270 quilômetros de trilhos e 104 estações, e que corta territórios controlados por facções rivais, repórteres encontraram, entre outros problemas, trechos da ferrovia usados para desova de restos de veículos cortados, 11 estações com comércio ou uso de drogas, ou sob algum tipo de influência do tráfico, e mais de 140 barracos construídos em áreas invadidas da linha férrea.
É um cenário que afeta os serviços à população e que se desenha longe de uma solução, às vésperas de começar a contagem regressiva para a despedida da SuperVia. Após quase 27 anos, a concessionária deve entregar o sistema ao estado entre julho e setembro, como definido em acordo judicial assinado entre as partes em dezembro de 2024. Como mostrou O GLOBO neste domingo, além da violência, a nova empresa que vencer a licitação a ser realizada pelo governo fluminense e assumir a operação deve encontrar ainda dramas como viagens mais demoradas e verdadeiros cemitérios de trens ao longo da linha férrea.
Perto desses trilhos, a maior parte das casas são construções feitas de madeira. Elas possuem numeração, e em alguns casos até ligações de luz elétrica, e são localizadas nos trechos entre as estações de Pilares, Del Castilho e Jacarezinho, região que sofre influência do tráfico e da facção criminosa Comando vermelho (CV). Há ainda imóveis em alvenaria. Um deles foi erguido ao lado de uma plataforma desativada de uma estação que nunca funcionou.
Peças amontoadas
Não é difícil enxergar pela janela do trem como o crime usa a malha ferroviária de passageiros. No ramal de Santa Cruz, foi possível flagrar, no dia 17 de junho, um ponto de desova de restos de carros cortados, colado ao muro na parte interna da linha férrea, localizado entre as estações de Campo Grande e Augusto Vasconcelos, na Zona Oeste. Ele não é o único. No ramal de Belford Roxo, a reportagem também encontrou peças de veículos amontoadas em três pontos diferentes, em viagens feitas nos dias 19 e 25 do mesmo mês. Um estava colado a um muro na parte interna, a menos de 200 metros da plataforma de embarque da estação Cavalcanti. O segundo foi visto próximo à chegada da estação Costa Barros e o terceiro entre as estações Triagem e Maracanã, na altura da comunidade da Mangueira.
Com 35 estações ao longo da ligação entre a Central do Brasil e Santa Cruz, o ramal que tem o nome do bairro da Zona Oeste possui pelo menos duas estações com algum tipo de influência do tráfico, principalmente durante a noite. São elas: Senador Camará, também citada num relatório da CPI dos Trens, em 2022, e Padre Miguel. Nesta última, no dia 17 de junho, foi avistada uma tenda plástica que abrigava usuários de drogas a menos de 200 metros de distância da estação. No trecho final da plataforma, havia uma barraca montada que exibia garrafas de bebida alcoólica, funcionando sem autorização da SuperVia. Sentado nas proximidades, um homem usava crack.
A falta de controle da área da estação também se reflete no número de passageiros que acessam o local sem fazer o pagamento da tarifa de R$ 7,60, ou R$ 5 para quem tem o benefício do Bilhete Único (BU). Segundo um balanço da concessionária, a estimativa é que, em todo sistema ferroviário de passageiros, 18 mil pessoas usem os trens diariamente sem pagar. A estação Padre Miguel é a primeira colocada em evasão de renda, de acordo com estatística da SuperVia.
Dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transporte (Agetransp) dão uma ideia do impacto que a violência causa no transporte feito pelos trens e na rotina das cerca de 300 mil pessoas que usam diariamente o serviço. Só entre janeiro e fevereiro deste ano, 659 viagens foram canceladas ou interrompidas por problemas relacionados à segurança pública, como tiroteios, furtos e roubos de cabos de energia e de sinais, ou vandalismo. Significa que, nesses dois meses, em média 11 partidas por dia foram suprimidas por esses motivos. Em 2024, o mesmo problema causou 3.893 interrupções ou supressões, o que resultou em uma média de 10,6 cancelamentos de viagens diariamente.
Seis meses, sete tiroteios
Levando em conta apenas os tiroteios, de acordo com informações fornecidas pela SuperVia, foram registradas, entre os dias 6 de janeiro de 2024 e 10 de junho de 2025, 23 trocas de tiros que causaram a interrupção da circulação de trens. Sete delas só nos seis primeiros meses deste ano.
Os passageiros do ramal Gramacho/Saracuruna são os que mais sofreram com as interrupções de tráfego provocadas por disparos nesse período. Foram 18 paralisações. A mais longa aconteceu em 20 de julho do ano passado, na altura da estação Cordovil. Na ocasião, um disparo atingiu a rede aérea eletrificada e provocou a interrupção do tráfego ferroviário na região por mais de dez horas, período necessário para que os reparos pudessem ser feitos.
Dois dias depois, uma nova troca de tiros aconteceu, desta vez durante uma operação da Polícia Militar em Parada de Lucas, Cordovil e Vigário Geral, que acabou com nove suspeitos presos e cinco granadas e três fuzis apreendidos. Durante 47 minutos, seis estações precisaram ser fechadas e houve ainda a interrupção do tráfego de trens.
A explicação para a grande incidência desse tipo de ocorrência no ramal Gramacho/Saracuruna está relacionada ao trajeto dos trens que cortam áreas dominadas por facções rivais. A malha ferroviária de passageiros passa pela Estação Manguinhos, comunidade com territórios controlados pelo Comando Vermelho (CV), e também pelas estações Vigário Geral, Parada de Lucas e Cordovil. As três localidades formam o Complexo de Israel e sofrem forte influência da facção Terceiro Comando Puro (TCP), comandada na região pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão.
Interrupção por 4 horas
Assim, tiroteios no entorno dessas três estações não são raros e acabam interrompendo o tráfego ferroviário para que pessoas não sejam atingidas por balas perdidas. Um deles aconteceu no dia 11 de março, quando um “resort” de Peixão foi localizado por policiais e demolido em Parada de Lucas. Durante a chegada dos policiais, houve troca de tiros. Os trens pararam por mais de quatro horas na região.
Entre as estações onde há comércio ou uso de drogas, ou que sofrem influência do crime, estão, além de Padre Miguel e Senador Camará (no ramal de Santa Cruz), Manguinhos, Vigário Geral, Parada de Lucas e Cordovil (no ramal de Gramacho/Saracuruna), e Jacarezinho e Del Castilho (no ramal de Belford Roxo). No último, a concentração de usuários de drogas pode ser observada por quem está no trem, ao longo da linha férrea, nos trechos entre Madureira e Cavalcanti, Thomaz Coelho e Pilares, e Pilares, Del Castilho e Jacarezinho.
Procurada, a Polícia Militar informou que, além das ações realizadas pelo Grupamento de Policiamento Ferroviário (GPFer) nas plataformas de embarque e desembarque de maior movimento, a corporação emprega efetivo das unidades operacionais da Região Metropolitana para patrulhar as áreas externas de todas as estações da SuperVia distribuídas ao longo dos 270 quilômetros de via férrea na capital e na Baixada Fluminense.
Segundo a PM, o policiamento é realizado pelo Patrulhamento Tático Móvel, além de equipes de radiopatrulhamento e motopatrulhamento, em pontos estratégicos na região, em apoio à concessionária, sempre que é solicitada.
A PM diz ainda que a SuperVia integra o Grupo de Trabalho com as Concessionárias de Serviços Públicos, criado pelo comando da Secretaria de Polícia Militar, para compartilhar informações e atuar de forma coordenada no combate a ações criminosas ocorridas no âmbito das empresas.
A instituição reforça a importância do acionamento da polícia diante de situações flagrantes via App 190 RJ ou pela Central 190.
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