Valor Econômico – “A legislação ambiental do licenciamento foi decepada”, diz a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, sobre a votação do projeto de lei que aconteceu na madrugada da quinta-feira (17), na Câmara dos Deputados. Ela cita prejuízos jurídicos, ambientais, econômicos e sociais com a aprovação “desse desmonte da legislação ambiental”, em suas palavras.
A ministra vislumbra dificuldades com a União Europeia, no acordo comercial UE-Mercosul, e indica o quanto o projeto é inadequado em ano em que o Brasil hospeda a COP30 e em um momento em que vive momentos turbulentos no comércio com os EUA.
Marina Silva, que vinha costurando diálogos com o relator do PL deputado Zé Vitor (PL-MG) juntamente com a Casa Civil e a Secretaria de Relações Internacionais adianta que, agora, as equipes do governo “estão discutindo como fazer as mudanças.” O presidente Lula tem 15 dias úteis para indicar seus vetos ao projeto votado ontem a partir da publicação do texto. Os vetos presidenciais podem ser parciais ou na totalidade, como pedem entidades ambientalistas.
Dezenas de organizações do setor privado, comunidade científica, setores religiosos e da sociedade civil enviaram cartas ao presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), pedindo adiamento da votação. “Foram muitos os apelos de que essa matéria tão importante para a mudança do clima, para a COP30, para a natureza, para os nossos interesses comerciais, não fosse votada. Infelizmente não foram ouvidos”, diz a ministra. A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Valor:
Valor: Qual o impacto do projeto de Lei do licenciamento ambiental aprovado ontem de madrugada pela Câmara dos Deputados?
Marina Silva:O projeto aprovado ontem pela Câmara, já no apagar das luzes para o recesso parlamentar, em votação remota e na madrugada, tem vários impactos. Um deles é de natureza jurídica. É a grande perda de um arcabouço legal estruturado ao longo de décadas. Uma votação em condições totalmente atípicas, que não considerou os clamores de diferentes setores da sociedade pedindo que o PL não fosse votado ontem para dar mais tempo de discussão, desmontou décadas de constituição desse marco jurídico.
Valor: Quais são os outros?
Marina: Outro prejuízo é o desdobramento sobre a natureza. Ao se retirar os regramentos adequados para o licenciamento, que é a principal coluna de proteção do meio ambiente do nosso país e da nossa legislação, os prejuízos são para os recursos hídricos, para a biodiversidade, para as florestas, para a proteção do solo, para a proteção do ar. E há prejuízos de natureza econômica: se se comprometem recursos hídricos em um país agrícola como o Brasil, o prejuízo para a agricultura é imediato.
Valor: Há impactos para a negociação do Acordo UE-Mercosul?
Marina: Cada vez mais se exigem produtos com valor sanitário, valor nutricional e tecnologia e, além disso, as pessoas querem ter certeza de que esses produtos não estão sendo feitos em prejuízo da proteção do ambiente e de populações locais, de compromissos climáticos e de biodiversidade. Estamos no processo de negociação do acordo União Europeia-Mercosul. E o tempo todo, neste processo, a questão ambiental foi uma cláusula fundamental. Quando o regramento é fragilizado ou decepado, como aconteceu com essa votação e o que foi feito na Câmara e no Senado anteriormente, cria-se para aqueles que já tinham uma certa resistência o argumento de que os resultados que nós estávamos alcançando na redução do desmatamento, em ter uma redução das emissões de CO2 em 59% e 67% em 2035, de que isso não será possível porque não se tem mais base legal para alcançar esses resultados. Temos prejuízo de natureza jurídica, ambiental, econômica e social com a aprovação desse desmonte da legislação ambiental que dá suporte ao licenciamento.
Valor: O que pode ser feito agora? Qual a estratégia?
Marina: Durante todo o processo, o governo, o Ministério do Meio Ambiente, a Casa Civil, a Secretaria de Relações Institucionais [SRI] estiveram em diálogo com o Congresso. Eu mesma estive pessoalmente com o presidente Hugo Mota [Republicanos-PB] e conversei com ele por telefone na quarta-feira. Sempre conversas muito respeitosas. Também tive uma reunião aqui no Ministério com o relator [deputado Zé Vitor, do PL-MG], tivemos outras reuniões com o ministro Rui Costa [Casa Civil] e inclusive uma na véspera da votação, na SRI. Estávamos eu, o ministro Rui Costa, o relator e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. Sempre conversas muito civilizadas. Mas o tempo todo deixamos claro que se não fossem feitas mudanças substantivas nos dispositivos que estavam desconstruindo a legislação que dá base para o licenciamento, o governo não se comprometeria em votar a favor.
Valor: Pode dar exemplos de pontos inaceitáveis e muito danosos?
Marina: São muitos. Há dispensa de licença para estação de tratamento de esgoto. O texto não considera impactos indiretos de projetos – e a gente sabe que o impacto indireto de Brumadinho [barragem da Vale que se rompeu em 2019 deixando 272 mortos] ou de uma estrada, é maior do que o impacto direto. Não considerar questões que não podem ser analisadas de forma simplificada para projetos de interesse estratégico do governo [as novas regras propõem a criação de Licença Ambiental Especial, que aprova, de forma acelerada, obras “estratégicas” de governo, mesmo que tenham alto potencial de degradação]. Outro ponto é o que permite que cada Estado possa ter um regramento assim como cada município possa ter o seu.
Nós não teremos como ouvir povos indígenas que ainda não tiveram suas terras demarcadas ou homologadas. A mesma coisa em relação ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que não teria mais um parecer vinculante no processo de licenciamento. E ainda a dispensa da licença de supressão de vegetação para remoção de cobertura vegetal da Mata Atlântica, tanto de mata primária quanto a em estado avançado de regeneração [que só pode ser autorizada em casos de utilidade pública e depende da autorização de órgãos estaduais competentes ou do Ibama, mas pela proposta votada na Câmara poderia ser dada por qualquer município, mesmo sem capacidade e estrutura técnica para tanto].
Valor: Estes são pontos cruciais?
Marina: Estou pegando pontos emblemáticos do que estava sendo tratado. Porque além daquilo que foi mudado no Senado [que alterou texto original da Câmara e aprovou o projeto da Lei Geral do Licenciamento em maio], que era o que estava em discussão ontem e que era só isso que podia ser revisto pelo regimento [apenas as mudanças feitas pelo Senado no texto da Câmara], ainda há mais de 40 dispositivos que não foram alterados e que igualmente têm sérios problemas.
Valor: E agora?
Marina: O governo está vendo os meios jurídicos e de mérito para propor as mudanças necessárias para preservar o licenciamento ambiental e evitar todo o processo de questionamento jurídico e de judicialização nos meios que nos competem. O governo tem seus dispositivos que é a forma do veto [presidencial, parcial ou total do texto aprovado ontem na Câmara], mas não basta vetar.
Valor: Por que não?
Marina: O que foi feito é uma mudança tão global que desmonta de tal maneira a estrutura de licenciamento do Brasil que não basta fazer vetos. Há que se trabalhar o que vai ser posto no lugar e a forma como isso vai ser posto no lugar. Obviamente sempre com a disposição de diálogo com o Congresso para que as soluções tomadas sejam uma segunda chance de não dar continuidade a essa forma de amputar todo o arcabouço jurídico da proteção ambiental. A legislação ambiental do licenciamento foi decepada.
Não adianta achar que se vai resolver isso pontualmente. É um projeto com mais de 60 artigos e cerca de 300 dispositivos, mas no que é essencial houve, sim, essa amputação. Já estamos trabalhando com as equipes da SRI, da Casa Civil e do Ministério do Meio Ambiente. Precisamos receber o texto formalmente, mas já estamos nos antecipando. Sempre com a disposição do diálogo.
Valor: É esse esforço que está sendo feito agora?
Marina: Inclusive olhando para dispositivos que não foram debatidos antes, porque não tinha base regimental, porque não haviam sido mudados no Senado.
Valor: Como qual?
Marina: Remover os órgãos colegiados das suas atribuições de estabelecer resoluções e regramentos para o licenciamento ambiental, como o Ibama, o Conselho Nacional do Meio Ambiente e estabelecer que isso agora será feito discricionariamente pelos governadores, prefeitos ou até mesmo pelo presidente da República. Isso é uma das coisas que ontem não foi tratada, mas que precisará ser.
Valor: Do jeito que está o projeto de lei aprovado permite a aprovação rápida da exploração de petróleo na Foz do Amazonas ou da pavimentação da BR 319, que liga Manaus a Porto Velho?
Marina: É uma ilusão achar que aprova. Do jeito que está teremos um processo generalizado de judicializações. Trata-se da troca de um arcabouço que tem um know-how de décadas e que vem sendo a base de todos os investimentos licenciados no nosso país por algo extremamente duvidoso. A sociedade, ao se sentir prejudicada em seus interesses, vai judicializar. O argumento de que assim se ganhará celeridade e agilidade não vai se concretizar. Primeiro porque vai criar uma desorientação geral dos órgãos de licenciamento que hoje funcionam como um sistema. Vai desestruturar e desconfigurar o sistema. Em segundo lugar, porque vai ter judicialização. Em terceiro, porque a médio e longo prazos causará imensos prejuízos econômicos, sociais e ambientais. Sobretudo para aqueles que são setores mais vulneráveis, como é o caso, inclusive, do agronegócio que depende de água. Com projetos como esse, aumenta o desmatamento, as queimadas, teremos menos chuvas, mais evapotranspiração, menos água no lençol freático e menos vazão nos rios.
Valor: Em ano de COP30 é uma sinalização ruim, não e?
Marina: É uma sinalização na contramão do que deve ser feito para enfrentar o recrudecimento da mudança climática e dos compromissos que nós temos.
Valor: E haverá uma guerra ambiental entre Estados?
Marina: E aí é uma coisa triste. A ideia da competição, geralmente, é que ali cada um mostre o melhor do seu melhor. No caso da proteção do meio ambiente, na forma como foi aprovado, promove uma competição por baixo, rebaixando o regramento, criando uma guerra estadual de rebaixamento ambiental.
Valor: Em um momento tão turbulento como o que vive o Brasil hoje, com ameaça de taxação dos produtos brasileiros pelo governo de Donald Trump -e que, inclusive, apela agora para o desmatamento ilegal no país?
Marina: Usa essa questão como se estivesse preocupado com o desmatamento, quando o desmatamento estava fora do controle durante o governo que ele apoiava [de Jair Bolsonaro]. Diz que isso atrapalha os interesses dos Estados Unidos. O que atrapalha os interesses do povo americano e da humanidade é sair do Acordo de Paris, é não querer ajudar os países vulneráveis a fazerem a transição.
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