Valor Econômico – No início dos anos 50, quando o Partido Comunista se propôs a reconstruir uma China devastada por anos de guerra, Mao Tsé-tung, o herói revolucionário e presidente do partido, fez uma avaliação muito franca sobre o estado desalentador da indústria nacional: “Podemos fazer mesas e cadeiras, xícaras e bules… Mas não podemos produzir um único automóvel, avião, tanque ou trator.”
Em pouco tempo, a Fábrica de Tratores Nº 1 e uma fábrica de rolamentos adjacente foram estabelecidas em Luoyang, uma cidade muito antiga da Província de Henan, na região central do país. Esse era um dos 156 projetos industriais previstos no Primeiro Plano Quinquenal do partido, de acordo com Karina Khasnulina, da Universidade de Leipzig. Apenas uns poucos anos depois, em 1958, o primeiro trator de manufatura chinesa, batizado de Dongfang Hong – “O Oriente é Vermelho” – saía da linha de montagem.
Passados 70 anos, a China hoje é uma potência mundial, a segunda maior economia do mundo e uma das duas verdadeiras superpotências militares. E ainda assim, como seus líderes em Pequim têm plena consciência, o país não conseguiu superar dezenas de “gargalos” industriais.
De um ponto de vista ocidental, a boa notícia é que, em última análise, esses gargalos têm dificultado o esforço da China para alcançar a independência e a deixam vulnerável à pressão dos EUA em uma época de guerras comerciais e controles de exportação.
Esses obstáculos incluem não só os chips de computador de ponta, como também uma série de componentes e materiais obscuros que são pilares imprescindíveis da manufatura moderna.
A má notícia, ao menos para o Ocidente e suas empresas, é que a China está resolvendo esses problemas de maneira metódica e sistemática e tem usado ferramentas como a inteligência artificial para avançar de maneira mais rápida.
As principais empresas europeias, japonesas e americanas, que costumavam estar protegidas da concorrência da China por causa dos problemas de qualidade e de produção inconsistente das fábricas chinesas, hoje estão em alerta máximo.
“O que nos deveria fazer parar para pensar é que a dinâmica da dependência tecnológica da China em relação ao Ocidente está mudando muito rápido”, diz Elisa Hörhager, representante-chefe na China da Bundesverband der Deutschen Industrie (BDI), a federação representativa dos interesses das indústrias alemãs na China.
“Muitas empresas estrangeiras ainda têm uma clara vantagem quando se trata de produtos industriais de grande qualidade, graças à sua reputação em termos de precisão e excelência em engenharia. Mas as concorrentes chinesas caminham rápido para alcançá-las.”
Vários gargalos, como a manufatura de semicondutores avançados, ainda estão a anos, se não a décadas, de serem superados, mas outros parecem estar perto de uma solução. Entre eles, produtos como fibra de carbono usada na aviação e rolamentos.
No mês passado, o presidente da China, Xi Jinping, escolheu as instalações da encarnação atual da fábrica da era Mao em Luoyang, hoje operada pelo estatal Luoyang Bearing Group, para lançar um chamamento à China para resolver todos os eventuais gargalos que ainda restam.
A visita do líder mais poderoso da China desde Mao a Luoyang foi tanto simbólica como oportuna.
Sucessivos presidentes americanos têm expandido de forma contínua os controles de exportação para restringir o acesso a tecnologias de ponta, temerosos de que o poderio tecnológico da China beneficie as forças armadas do país e ameace a segurança nacional dos EUA.
Para Kyle Chan, pesquisador especializado em política industrial chinesa da Universidade de Princeton, esses controles – ou a ameaça de impô-los – levaram Pequim a investir mais recursos na mitigação de suas vulnerabilidades do que faria se a situação fosse diferente.
A motivação para Xi buscar a autossuficiência industrial da China só se intensificou desde que o presidente Donald Trump voltou à Casa Branca e deu início a uma guerra comercial mundial que ameaça acelerar o desacoplamento das duas maiores economias do mundo.
“Desde a nossa velha dependência de fósforos, sabão e ferro importados para nos tornarmos hoje o maior país manufatureiro do mundo, com o leque mais completo de categorias industriais, temos seguido o caminho certo”, disse Xi a engenheiros e técnicos de rolamentos em Luoyang.
“A China precisa continuar a aprimorar nosso setor manufatureiro, insistir na autossuficiência e no autoaperfeiçoamento [e] dominar as tecnologias de base fundamentais.”
Em um parque empresarial sem nada de particular nos arredores de Hangzhou, no leste da China, há sinais de que uma revolução industrial silenciosa está em andamento.
Uma equipe de engenheiros chineses da DeepVision Technology está reaproveitando uma tecnologia de processamento de imagem desenvolvida originalmente para cirurgias gástricas para resolver um problema que tem frustrado teimosamente os engenheiros chineses há décadas: como fabricar rolamentos de alta qualidade e em grande escala.
Rolamentos de alta qualidade são cruciais para reduzir o atrito em todo tipo de equipamentos, desde trens de alta velocidade e máquinas de perfuração de túneis até veículos elétricos, robôs humanoides e drones.
Cosimo Ries, analista de energia da consultoria Trivium China, chama atenção para o fato de que, no caso de máquinas como as turbinas eólicas de alto mar – que hoje são construídas com quase 200 metros de altura e precisam durar em torno de 25 anos -, os fabricantes de rolamentos lidam com “exigências de confiabilidade inacreditáveis”, pois seus produtos precisam aguentar pesos e pressões “enormes”.
A China é de longe o maior mercado individual de rolamentos do planeta. Mas em termos mundiais as empresas que dominam o setor, avaliado em US$ 53 bilhões, são a sueca SKF, a alemã Schaeffler, o grupo americano Timken e as japonesas NSK, NTN e JTEKT.
As seis maiores fabricantes respondem por cerca de 55% do mercado mundial de rolamentos, de acordo com o relatório anual da SKF, que tem sede em Gotemburgo. A fatia dos grupos chineses é de cerca de 25%.
Um estudo de 2020 realizado por pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Wuhan observou uma “disparidade significativa” entre as empresas chinesas e suas rivais suecas e japonesas em termos de controle do grau de defeitos microestruturais e da precisão dimensional. De acordo com um ensaio investigativo do grupo chinês de investimento Kai Yuan Securities, publicado quatro anos depois, produtos de média e alta qualidade ainda respondiam por apenas cerca de 20% da produção total dos fabricantes chineses de rolamentos.
Em um escritório no alto de sua fábrica, Wang Shuailin, o animado fundador da DeepVision, de 38 anos, conta de maneira resumida como sua equipe combina um chip de inteligência artificial com sensores de imagem para identificar defeitos de formato, tamanho e estrutura em um rolamento que pode medir tão pouco como 2 micrômetros – 0,002 milímetros.
O sistema de inspeção da DeepVision, segundo ele, tem melhorado radicalmente o controle de qualidade para seus clientes, entre os quais a fábrica de Luoyang.
Wang diz que um cliente chinês viu sua “taxa de qualificação”, ou seja, a porcentagem de rolamentos que fabrica e são bons o suficiente para serem vendidos a clientes, saltar de menos de 90% para 97%.
Outro cliente, que antes recebia até 400 reclamações de clientes por ano a respeito da qualidade de seus produtos, hoje recebe apenas duas ou três, ao mesmo tempo em que os requisitos de pessoal para fazer a inspeção caíram de 150 para apenas algumas pessoas.
“Existe um estereótipo injustificado de que a China não tem competência para produzir esses tipos de máquinas de alta precisão”, afirma Wang.
Ele admite que as rivais estrangeiras acumularam vantagens tecnológicas por um longo período de tempo, mas acredita que, quando se trata da introdução da inteligência artificial na manufatura, iniciada por volta de 2017, 2018, todas estão “começando do mesmo patamar”.
“E hoje a China tem adotado essas tecnologias mais rápido, portanto nossos produtos serão melhores”, acrescenta.
Uma pesquisa da consultoria China Policy, encomendada pela BDI e publicada em maio, mostrou que as 4 milhões de fábricas chinesas estão apenas começando a perceber o impacto causado pelo tipo de aplicação industrial da inteligência artificial apresentada pela DeepVision.
Mas isso pode mudar logo, já que Pequim estabeleceu a meta de alcançar um nível avançado de manufatura inteligente na maioria das grandes fábricas nos próximos 10 anos.
Mesmo assim, no cenário atual os maiores fornecedores estrangeiros de rolamentos mantêm uma vantagem técnica expressiva sobre a China.
Isso é verdade em especial no caso da produção de componentes vitais para máquinas que precisam funcionar por longos períodos e em ambientes ou temperaturas extremos, como no espaço ou em instalações químicas. Mas mesmo as empresas mais dominantes do setor estão preocupadas com o avanço chinês.
Vivian Wang, chefe de marketing da SKF na China, cita como exemplo a história das vendas de rolamentos na China por seu grupo, que começou em torno de 1912, logo depois do fim da Dinastia Qing, que durou 268 anos. Ela salienta a forte presença do grupo no país, com nove instalações fabris, 6 mil funcionários e um alto índice de uso de cadeias de fornecimento locais em todas as suas operações.
“Reconhecemos as capacidades crescentes de nossas concorrentes, inclusive as da China, mas agimos a partir de uma posição de vantagem”, afirma.
Sadatsune Kazama, vice-gerente geral de design de produtos para rolamentos da NTN, que tem sede em Osaka e é a quarta maior fabricante de rolamentos do mundo, diz que hoje os grupos chineses estão no mesmo nível dos líderes do setor em termos de tecnologia de manufatura, mas ainda ficam atrás deles quando se trata de capacidades de design.
“As pessoas costumavam ter a impressão de que os produtos chineses, e não só os rolamentos, eram baratos, mas de menor qualidade… Acho que hoje em dia já não há muita diferença.”
De qualquer forma, ele argumenta que as empresas japonesas ainda são superiores em critérios de qualidade, confiabilidade e suporte pós-venda de longo prazo. “Fabricamos rolamentos há 100 anos e temos feito isso com base na vasta experiência que acumulamos.”
Uma autoridade da área de política industrial do governo japonês, que pediu para não ter seu nome revelado, sugere que a qualidade chinesa ainda precisa passar pela prova do tempo.
“É incrível o quanto a China evoluiu. Mas não faz nem 20 anos que os chineses começaram a fabricar tecnologia de precisão. Os produtos precisam durar mais de 30 anos, portanto ainda não sabemos qual a durabilidade de seus produtos”, explica.
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