Valor Econômico – Em nenhum momento no PL 2.159/2021, o projeto que altera as regras do licenciamento ambiental no Brasil, a palavra clima é mencionada. É um termômetro do texto que pretende modernizar o rito de como se autorizam obras e atividades econômicas no país, segundo o argumento de setores mais conservadores do agronegócio, da mineração e da indústria, fortes defensores da proposta. A falta de menção à emergência climática em que o mundo se encontra indica o rumo destas regras, que olha para um Brasil do passado e é entendido como um dos mais graves retrocessos socioambientais da história.
“Clima não é assunto para uma lei fundamental ao sistema de proteção ambiental do país”, ironiza Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e atual coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, a maior rede brasileira de entidades e movimentos preocupadas com clima e desenvolvimento. “É uma vergonha, em 2025. É uma lei gestada de jeito a nascer velha”.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência foi uma das várias entidades da sociedade civil -incluindo aí setores da indústria e do comércio ao lado de ambientalistas, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais- a se opor ao que chamam de “Lei da Devastação”. Reunindo o aval de mais de 160 instituições, a SBPC lançou manifesto mostrando o que o PL faz, na análise da ciência: fragiliza regras e mecanismos de análise, controle e fiscalização de empreendimentos e atividades potencialmente degradadoras e poluidoras.
Dos seis biomas brasileiros, quatro estão perto do ponto de não retorno – Amazônia, Cerrado, Pantanal e Caatinga. “Se ultrapassados estes pontos, estes biomas poderão entrar em colapso ambiental deixando de prestar seus múltiplos serviços ecossistêmicos”, dizem os cientistas. Para evitar o tal colapso, quem entende do riscado aconselha, urgentemente, que se zere a destruição da vegetação nativa, que se combatam os incêndios e a degradação ambiental e que se comece a restaurar tudo isso em larga escala. É uma mensagem cristalina e em sentido contrário ao que prega o PL.
Há muitas outras no mesmo tom. Além de colocar em risco os biomas, o PL ameaça a Lei da Mata Atlântica, um bioma que já perdeu 76% de sua cobertura original. O projeto é incompatível com os compromissos climáticos assumidos pelo governo brasileiro no Acordo de Paris. É totalmente inadequado à liderança que o Brasil procura ao sediar a COP30, em Belém, em novembro.
São vários os seus pontos controversos e perigosos. A proposta dispensa o licenciamento ambiental de uma ampla gama de atividades agropecuárias, provoquem ou não danos ambientais. Deixa à consciência do empreendedor os danos socioambientais que seu empreendimento possa provocar, porque permite que projetos de médio porte e médio potencial poluidor sejam licenciados automaticamente, a partir de uma autodeclaração. Pior: estas licenças serão fiscalizadas por amostragem.
Ora, isso funcionaria no País das Maravilhas -não no Brasil, onde se luta para que as florestas fiquem de pé, que a lei seja praticada, que projetos de infraestrutura não retirem povos indígenas e comunidades quilombolas de seus territórios originais e de direito, para citar só alguns exemplos.
A opinião de órgãos não licenciadores, como a Funai, o IcmBio ou o Iphan, será desconsiderada. Há desvinculação do licenciamento da outorga do uso da água. Isso ignora situações como a de mais da metade de municípios no Cerrado, por exemplo, que já enfrentam redução de água superficial em 30%. Cerca de 80% dos territórios quilombolas e 32% das Terras Indígenas, que são áreas aguardando titulação e homologação, serão ignoradas nos processos de licenciamento ambiental.
Os pesquisadores Júlia Benfica Senra e Gesmar Rosa dos Santos chamam a atenção para outros pontos danosos. O PL assume que Estados e municípios terão capacidade para analisar empreendimentos -mas esta não é a realidade. “A proposta aponta deficiências que realmente existem no sistema e o fragiliza mais”, diz Júlia. “Abaixa a régua em vez de subi-la”.
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