Legado concreto

Uma conjuntura política favorável permitiu que a cidade do Rio de Janeiro contratasse, em 2 de outubro de 2009, em meio à crise econômica internacional, seu maior ciclo de investimentos desde a década de 1960 com a conquista do direito de realizar os Jogos Olímpicos de 2016. “Sem o alinhamento político entre município, Estado e União não teria sido possível”, diz o secretário municipal de Transportes, Rafael Picciani, repetindo um discurso cristalizado nos três níveis de governo.

Primeira cidade da América do Sul a conseguir esse feito, o Rio está investindo R$ 39,07 bilhões no projeto, segundo a mais recente estimativa da Autoridade Pública Olímpica (APO), de janeiro, dos quais R$ 24,6 bilhões são obras que, efetivamente executadas, resultarão no que ficou conhecido como legado da realização dos Jogos para a cidade, independentemente dos equipamentos esportivos especialmente construídos, alguns de futuro controverso. Já se sabe que o legado ambiental será bem aquém do programado.

O legado é visto por especialistas como a essência dos benefícios trazidos pela realização dos Jogos Olímpicos, independentemente de ganhos de exposição de imagem e de faturamento com turismo que a cidade terá durante o evento, se tudo correr a contento. Ele representa aquilo que o Rio vai incorporar de melhoria urbana para além dos equipamentos esportivos.

A mobilidade urbana será a componente mais contemplada no legado, correspondendo a 55,3% das obras (R$ 13,61 bilhões) se computadas apenas as intervenções exclusivas em transportes. O número sobe para perto de 80% se considerado que a maior parte dos R$ 8,2 bilhões aplicados no Porto Maravilha está sendo consumida em obras viárias. Juntas, as obras do VLT, BRT Transolímpica, Complemento do BRT Transoeste (Terminal Alvorada-Jardim Oceânico), duplicação do Elevado do Joá (conexão rodoviária da Barra com a Zona Sul), projeto viário do Parque Olímpico, Metrô Linha 4, remodelação das estações ferroviárias olímpicas e mais o Porto Maravilha somam R$ 21,61 bilhões, ou 88,6% do total do legado.

O orçamento total do evento é a soma do legado, previsto no Plano de Políticas Públicas dos três níveis de governo, mais R$ 7,4 bilhões do Comitê Organizador (a organização dos Jogos) e mais R$ 7,07 bilhões da chamada Matriz de Responsabilidades, que corresponde ao compromisso municipal com a construção da infraestrutura esportiva.

Embora a Prefeitura do Rio venha buscando formas de evitar que instalações olímpicas transformem-se em elefantes brancos após os Jogos, como ocorreu, por exemplo, com o Parque Aquático Maria Lenk e o Velódromo após os Jogos Pan-Americanos de 2007, especialistas consideram inevitável que isso venha a ocorrer. “O Pan e a Copa [do Mundo de Futebol de 2014] também tinham planos para evitar os elefantes brancos, mas o que vimos foram equipamentos do Pan caindo aos pedaços e arenas quase sem uso ou dando prejuízos”, pondera o advogado Pedro Trengrouse, especialista em direito esportivo e ex-consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Copa de 2014.

A Prefeitura do Rio vem trabalhando para dar uso a equipamentos de reconhecido risco de ociosidade como o campo de golfe e o próprio novo velódromo feito em substituição ao do Pan, que não se enquadrava nas exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI). Para o velódromo planeja-se, além de treinamento de atletas de ponta e competições nacionais e internacionais, uso por equipes de projetos sociais e a transformação do centro da pista em área para competições de boxe, esgrima, taekendo e levantamento de peso. O campo de golfe será gerido pela Confederação Brasileira de Golfe (CBG) que terá a missão de atrair novos praticantes para o esporte.

Para o presidente do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, Pedro Celestino, o risco de elefantes brancos é o menor problema, plenamente compensado pelos ganhos que a cidade terá de imagem. “Quando se parte para disputar os Jogos Olímpicos sabe-se que haverá arenas de pouco uso, de esportes pouco populares no país. O legado, os ganhos de visibilidade e o prestígio adquirido superam esse problema.”

Mas é no legado que o especialista vê problemas, especialmente na área de mobilidade. Em sua avaliação, as escolhas foram feitas sem obedecer a um planejamento e nem sempre elas se enquadram no desenho mais adequado para a cidade.

A Linha 4 do Metrô, por exemplo, é como se fosse um prolongamento da Linha 1 pelo lado da zona sul, levando ao risco, segundo ele, de superlotar os trens da zona sul para o centro ou obrigar a intervalos longos para os passageiros que vêm da zona oeste (Linha 4). O correto, em sua avaliação, seria ter uma perna dessa Linha 4 ligando a Gávea à Tijuca, permitindo o acesso ao centro tanto pelo Sul como pelo Norte.

Ele também critica o abandono do projeto de extensão da Linha 2 no centro, entre o Estácio e a Praça 15 de Novembro e a construção do BRT Transbrasil (obra em curso, embora não tratada, formalmente, como legado dos Jogos), no leito da avenida Brasil. Segundo avalia, o novo BRT corre paralelamente ao sistema de trens suburbanos que, modernizado, faria o mesmo serviço de forma muito mais eficiente. As opções, segundo o engenheiro, foram determinadas pelo poder político dasempresas de ônibus. A Secretaria Estadual de Transportes disse que as linhas de Metrô reclamadas por Celestino estão no planejamento do Estado.

A suposta falta de planejamento também é apontada pelo arquiteto e urbanista Nireu Cavalcanti. “Perdemos o sentido do planejamento e as administrações passaram a adotar propostas pontuais”, disse. Cavalcanti, autoridade em história urbanística do Rio, critica o uso do BRT como corredor de transporte de massa, substituindo trens e metrô, e a adoção do VLT, veículo maior do que os bondes tradicionais, como opção para o centro histórico da cidade e áreas novas de lazer, como a nova Praça Mauá. Ele põe em dúvida também se trajetos como Rodoviária-Aeroporto têm tráfego de passageiros que os justifiquem.

O secretário Picciani afirma que o VLT interliga modais, conectando-se com várias estações do metrô, com a Central do Brasil e com um grande terminal de ônibus. “A preocupação não é ligar a rodoviária ao aeroporto”, disse. Segundo ele, o VLT, justamente por ser um veículo leve sobre trilhos, é usado em centros históricos de várias cidades, como  Amsterdã, Viena e Lisboa. “Foi uma demanda da própria cidade para retirar ônibus e melhorar o tráfego no centro”, completa.

O secretário diz que os BRTs têm capilaridade maior do que o metrô e custam menos. Segundo ele, a cidade vai saltar de 18% para 63% do seu território coberto por transporte público de alta capacidade. Picciani rechaça a interpretação de que o município tenha sucumbido ao poder das empresas de ônibus, afirmando que os BRTs foram licitados e com exigências feitas aos operadores.

Se a mobilidade recebeu críticas, o legado ambiental ficou aquém do prometido, começando pela meta de tratar 80% do esgoto lançado na Baía de Guanabara. O próprio secretário estadual de Ambiente, André Corrêa, que assumiu em janeiro de 2015, já disse não compreender como ela foi definida, dado o pequeno volume investido até agora (US$ 800 milhões do acordo firmado com o Japão na década de 1990). “Quem conhece o tema sabe que isso não faz nem cosquinha nas necessidades”, resumiu durante palestra no Fórum Nacional, realizado em maio.

Apesar dos senões, os organizadores dos Jogos estão certos do sucesso do evento. “Apesar da complexidade do contexto político e econômico, estamos confiantes de que o Brasil e os brasileiros estão em plenas condições de realizar Jogos Olímpicos bem-sucedidos, com um legado extraordinário”, disse ao Valor o presidente da Comissão de Coordenação dos dos Jogos, Nawal El Moutawakel, membro do COI.

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