Valor Econômico – Assim como aconteceu nos anos mais desafiadores da pandemia, a participação das rodovias no transporte de carga cresceu ainda mais em 2023, reforçando o desequilíbrio na malha logística brasileira. Se nos anos anteriores a principal causa desse crescimento havia sido a explosão do e-commerce para atender um país em isolamento, dessa vez o tráfego mais acentuado de caminhões se deveu à última safra recorde de grãos.
“Quando a demanda dá um salto, não há como evitar a sobrecarga das rodovias. Elas responderam por 63,4% de tudo que foi transportado no país no ano passado, segundo nossas projeções”, informa o consultor Maurício Lima, do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). Ele chama a atenção também para um detalhe que costuma passar despercebido: o envelhecimento dos motoristas profissionais. “Há um certo desinteresse pela profissão. Eles eram 5,5 milhões em 2014 e hoje são apenas 4,4 milhões em atividade. Desses, 1,2 milhão têm mais de 60 anos e apenas 800 mil menos de 40”, observa.
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Entre 2014 e 2018, a participação das rodovias na matriz de transportes caiu gradativamente, de 66,7% para 59,8%, mas desde então voltou a subir, ano após ano. Em 2023, ainda de acordo com estimativas do Ilos, a entrega de produtos por caminhões se intensificou de tal maneira que deixou em segundo plano o desempenho dos modais ferroviário e aquaviário – que, apesar de terem movimentado mais carga do que em 2022, registraram percentuais menores de participação na malha logística. No caso das ferrovias, essa participação recuou de 19% para 18,3%, enquanto no modal aquaviário a queda foi menos sensível, de 14,6% para 14,2%.
A utilização de ferrovias, hidrovias e navegação de cabotagem na distribuição de mercadorias é sabidamente mais econômica e menos danosa ambientalmente do que o transporte por caminhões, mas depende do estabelecimento de rotas confiáveis, o que não acontece de um dia para outro. A revitalização desses modais, buscando tornar mais atraentes as concessões de novas linhas ferroviárias e desburocratizando os processos para a navegação de cabotagem, é alvo de investimentos do governo federal, como ocorreu no anterior. Os resultados, contudo, levam tempo para aparecer.
Em 2023, primeiro ano do atual governo, a lista de iniciativas para a renovação da malha ferroviária incluiu a retomada de obras na Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), a conclusão da Ferrovia Norte-Sul (que finalmente completou a travessia entre os portos de Itaqui, no Maranhão, e Santos, em São Paulo, após 35 anos de anda e para) e o investimento de R$ 175 milhões na Transnordestina, projetada para ligar Eliseu Martins, no Piauí, ao porto de Pecém, no Ceará. No balanço de fim de ano, o Ministério dos Transportes também reafirmou o investimento de R$ 94,2 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no sistema de ferrovias até 2026, com recursos públicos e privados.
Apesar da atenção que o modal ferroviário passou a ter nas últimas administrações federais, interrompendo décadas de abandono, as rodovias continuam recebendo a maior parte dos investimentos no setor de transportes – até porque as obras de conservação estão muito atrasadas. O último levantamento da Confederação Nacional do Transporte (CNT) sobre o estado das estradas brasileiras, divulgado em dezembro passado, revelou que dois terços delas (67,5%) estão em situação precária. A pesquisa da CNT mobilizou 20 equipes, que percorreram 111,5 mil km em todas as regiões do país.
Malconservadas, as estradas brasileiras registram muitos acidentes e são as principais responsáveis pelo elevado custo logístico do país. Em 2023, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) contabilizou 114.295 acidentes nas rodovias federais e privatizadas, que resultaram em 7.529 mortes. A CNT calcula em R$ 13,4 bilhões os prejuízos materiais desses sinistros. Já o Ilos estima que o custo logístico – que inclui despesas de transporte, estoque, armazenagem e administração em todos os modais – alcançou em 2023 o equivalente a 15,8% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, o dobro do percentual dos Estados Unidos.
A consultoria Inter.B projeta para este ano investimentos de R$ 215,83 bilhões em infraestrutura no país, uma alta de 11% em relação a 2023, somando recursos públicos e, principalmente, privados. Desse total, cerca de R$ 75,34 bilhões devem ser direcionados ao setor de transporte, dos quais R$ 47,05 bilhões atenderiam às urgências das rodovias.
É uma boa notícia, mas é preciso manter esse nível de investimento por vários anos para recuperar a malha rodoviária, adverte Claudio Frischtak, sócio da Inter.B. Para deixar os 213,5 mil km de rodovias brasileiras pavimentados em nível dos países desenvolvidos, seriam necessários bem mais do que isso, segundo especialistas – e vale lembrar que o asfalto cobre apenas 12,5% da extensão total das estradas que cortam o país.
O governo atual até gostaria de avançar mais nas privatizações para aumentar os recursos no setor de transportes, mas tem encontrado certa dificuldade para viabilizar os leilões de estradas, ferrovias e aeroportos. “O mercado se acomodou, porque sobraram poucos ativos interessantes para a iniciativa privada”, observa o especialista em infraestrutura Paulo Dantas, do escritório Castro Barros Advogados.
“No caso das rodovias, as principais concessionárias parecem satisfeitas com o que já conseguiram. Entre os aeroportos, apenas o Santos Dumont, no Rio de Janeiro, é capaz de atrair investidores, mas o governo ainda não estabeleceu uma data para o leilão, provavelmente, porque quer encontrar antes uma maneira de poupar o Galeão da concorrência direta. E o processo de privatização do porto de Santos foi cancelado”, relata Dantas.
Nesse quadro de dificuldades, o governo só conseguiu realizar um leilão de rodovias até agora, no Paraná, para suprir a desistência de uma antiga concessionária. Contratos que as empresas que administram os ativos não conseguem cumprir são um problema recorrente – o governo quer renegociar os termos, atendendo interesses das duas partes. Segundo o ministro dos Transportes, Renan Filho, 14 dos 24 contratos de concessão de rodovias realizados no país desde os anos 1990 estão estressados e correm risco de ser paralisados, o que já ocorreu em três ocasiões. A expectativa do ministério é que a otimização desses contratos problemáticos, incluindo a extensão dos prazos de concessão, poderia atrair R$ 110 bilhões de investimentos.
Outra decisão do governo é investir recursos próprios para tornar ativos logísticos minimamente atrativos antes de programar os leilões. Nesse sentido, anunciou recentemente que vai assumir as obras de duplicação dos 31,4 km da BR-381 entre Belo Horizonte e Caeté (MG). “Entendemos que o recurso privado tem que ter uma lógica de retorno, senão ninguém investe. Por isso, estamos melhorando o projeto e dividiremos os riscos, duplicando um dos trechos mais complexos da rodovia”, afirma Renan Filho.
Dois novos projetos de concessão de rodovias, considerados mais viáveis por atender diretamente ao agronegócio, acabam de ser enviados pelo Ministério dos Transportes à apreciação do Tribunal de Contas da União (TCU): o trecho da BR-364 entre Porto Velho e Vilhena, em Rondônia, e o da chamada Rota Verde, entre Rio Verde e Itumbiara, em Goiás. Somados, os projetos preveem R$ 10,5 bilhões em investimentos pelos 30 anos de duração dos contratos.
Já o projeto da Ferrogrão, o mais aguardado pelos produtores agrícolas do Centro-Oeste, ligando Sinop (MT) a Miritituba (PA), às margens do rio Tapajós, continua em compasso de espera. Desde que foi anunciado, em 2015, com um traçado que prevê cruzar reservas indígenas e áreas florestais protegidas, tem sofrido forte oposição de grupos ambientalistas. Em 2021, uma ação de inconstitucionalidade do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) levou a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em setembro de 2023, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a ação por seis meses e determinou a realização de estudos de impacto ambiental e consulta aos povos impactados pela obra. A decisão do STF pode sair agora, no fim de março.
Os apoiadores da Ferrogrão argumentam que a ferrovia trará mais benefícios do que danos ambientais, ao transportar em 12 vagões o equivalente à capacidade de 400 caminhões – e, com isso, evitar a emissão de milhões de metros cúbicos de CO2 na atmosfera, além de reduzir em 25% o custo do frete. No dia 8 de março, o grupo de trabalho formado por representantes dos ministérios dos Transportes e dos Povos Indígenas chegou a um acordo sobre quantas comunidades indígenas deverão ser consultadas: serão 16. Isso pode indicar o início de um acordo maior, lá na frente – ou não.
Outro avanço promissor na área logística, que vem se desenvolvendo silenciosamente, sem depender de questões legais controversas ou de grande volume de recursos, é o uso crescente de ferramentas tecnológicas para agilizar os deslocamentos, melhorar o controle dos estoques e reduzir custos. A inteligência artificial (IA) é cada vez mais usada na identificação e tratamento de cargas, o blockchain tem simplificado muito a gestão de documentos e as placas de energia solar reduzem a pegada de carbono e a conta de eletricidade dos centros de distribuição. A preocupação com a sustentabilidade dos processos, aliás, é outra tendência importante do setor.
Recente pesquisa da consultoria McKinsey aponta que 15% das empresas brasileiras do ramo logístico já incorporaram as ferramentas tecnológicas mais modernas. “Outras 30% estão no meio do caminho e as 55% restantes estão iniciando o processo de digitalização ou, ao menos, considerando isso”, informa Marcelo Steffen, da McKinsey Brasil.
Uma boa amostra dessa evolução tecnológica pôde ser constatada durante a Intermodal, uma das maiores feiras de logística do mundo, realizada entre os dias 5 e 7 de março em São Paulo. “O setor já entendeu a importância de investir em inovações tecnológicas e na transformação digital para dar mais segurança, agilidade e alta capacidade de monitoramento às operações, de ponta a ponta”, afirma Hermano Pinto Jr., diretor da Informa Markets Brasil, organizadora da Intermodal.
De acordo com a Mordor Intelligence, empresa indiana de pesquisa de mercado e consultoria de negócios, o setor logístico brasileiro deve movimentar US$ 640 bilhões neste ano, o equivalente a 10% do mercado mundial. “Acredito que pelo menos 5% desse volume de negócios são concretizados a partir de contatos estabelecidos durante a Intermodal, que neste ano recebeu 44 mil profissionais da área e teve 500 expositores de 15 países”, informa o organizador.
Frequentemente também se chega a soluções na área logística que dependem apenas do engenho e arte dos operadores. É o caso dos ensaios que a Imediato Nexway, transportadora que presta serviços a empresas de grande porte em diversos segmentos, começou a fazer um ano atrás.
“Como nossos clientes exigem entregas mais intensas em alguns dias da semana do que em outros, ou em alguns meses do ano do que nos demais, estamos tentando fazer um revezamento da frota que atenda melhor a todos, com muita economia no final”, explica Roberto Zampini, diretor da transportadora, que é baseada em Ribeirão Preto (SP) e conta com uma frota de seis mil caminhões, dos quais 3,5 mil são próprios.
A iniciativa ainda está em fase experimental, porque depende da concordância de cada cliente em abrir mão de parte da frota contratada com exclusividade, em cada caso. Mas tem sido bem recebida, diante dos benefícios que contemplam todas as partes envolvidas. Exemplo: de março a julho, quando o consumo de cerveja é menor, parte dos caminhões dedicados à distribuição da bebida pode ser adaptada para o transporte de combustível, que costuma crescer nessa mesma época. Outro: a frota que transporta laranjas das plantações às fábricas de suco entre maio e dezembro pode ser parcialmente deslocada para Goiás, onde a colheita de soja requisita mais meios de transporte.
“É o que chamamos de logística colaborativa, com um cliente ajudando outro em determinados meses e evitando a ociosidade de caminhões e a dispensa de motoristas treinados”, resume Zampini.
Para Pedro Moreira, presidente da Associação Brasileira de Logística (Abralog), o setor vive um momento bom, com a perspectiva de mais investimentos do PAC nos modais de transporte. “O governo já superou o primeiro ano de gestão, que é sempre mais difícil, e teve o bom senso de desistir da emenda provisória que reonerava os 17 setores que mais empregam no país. Seria um desastre para o nosso setor, acarretando muito desemprego”, afirma.
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