O Globo – O trem a vapor partiu da estação com um suave resfolegar, expelindo nuvens de vapor que passavam pelas janelas dos vagões. À medida que ganhava velocidade, a locomotiva transportava seus passageiros por um vale úmido e verdejante, passando por construções de pedra cinzenta, carvalhos encharcados de chuva, margens cobertas de samambaias e colinas salpicadas de ovelhas.
Para muitos visitantes da ferrovia histórica Keighley and Worth Valley, o pitoresco trajeto de oito quilômetros pelo norte da Inglaterra, ligando a cidade de Keighley à vila de Oxenhope, é a principal atração. Mas, para os passageiros da última terça-feira (15), era apenas o começo.
Uma adaptação teatral do clássico infantil “Os meninos e a ferrovia”, de Edith Nesbit, os aguardava quando desembarcaram em Oxenhope. Para tomar seus lugares, os espectadores seguiram para um amplo galpão de máquinas ao lado da plataforma, onde se sentaram em ambos os lados de um trilho ferroviário. As cenas se desenrolavam em um cenário móvel que deslizava para cima e para baixo pelos trilhos. E, em certos momentos-chave da peça, um segundo trem a vapor real entrava em cena como parte da ação.
Era um cenário perfeito para uma história que se passa inteiramente em torno de uma pequena estação de vila na Era do Vapor. “Os meninos e a ferrovia” acompanha três irmãos — Bobbie, Peter e Phyllis — que precisam deixar seu lar confortável em Londres para viver em um simples chalé no campo depois que o pai é preso sob suspeita de espionagem. As crianças demonstram uma alegre resiliência diante da pobreza repentina e logo são acolhidas pela comunidade rural.
O livro de Nesbit foi publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha em 1905 e nunca saiu de catálogo. A BBC produziu três adaptações para a televisão na década de 1950, além de uma versão em 1968, estrelada por Jenny Agutter como Bobbie. O sucesso foi tão grande que o ator Lionel Jeffries comprou os direitos e fez um filme celebrado pelo público em 1970, novamente com Agutter no papel principal. Ambas as versões — e também uma sequência de 2022, com Agutter reprisando o papel como uma Bobbie adulta — foram filmadas ao longo da linha ferroviária Keighley and Worth Valley.
Muitos britânicos se lembram do filme de 1970 por seu final emocionante e feliz, que segue a história original de Nesbit. Quando o pai de Bobbie a surpreende ao descer de um trem, ela grita “papai, meu papai!” e corre pela plataforma até que ele a levante nos braços.
Mesmo 55 anos depois, essa fala é instantaneamente reconhecida por muitos britânicos — e ainda é capaz de arrancar lágrimas.
“É impossível não se emocionar com aquela cena final”, disse Matthew Linley, no trem de volta a Keighley após o espetáculo, na terça-feira. “Você sabe que ela vai acontecer”, comentou, antes que seu amigo, Richard Haswell, completasse: “E mesmo assim você chora toda vez!”
Ambos disseram que o livro e o filme fizeram parte de sua infância. Quando adolescente, Haswell chegou a trabalhar como guarda de passagem de nível em Oakworth, uma das estações ao longo da linha férrea. “Somos muito apegados a esta ferrovia”, afirmou.
Jenna Drury, outra espectadora, contou que também tinha memórias de infância do livro. “A história continua forte”, disse. “É bastante comovente.” A viagem no trem a vapor e a locomotiva no palco só aumentaram a experiência, acrescentou: “Você tem o elemento sensorial, o cheiro do trem.”
Montar “Os meninos e a ferrovia” com uma locomotiva real foi ideia do diretor Damian Cruden, que apresentou o espetáculo pela primeira vez no Museu Ferroviário de York, na Inglaterra, em 2008; versões posteriores foram exibidas em Londres e Toronto. No entanto, está é a primeira vez que o público chega ao espetáculo de trem a vapor.
“Há algo mágico nisso”, disse Cruden, acrescentando que espera que os espectadores sintam como se tivessem viajado no tempo.
Esse desejo de voltar ao passado transformou as ferrovias históricas em atrações turísticas populares no Reino Unido. Há 173 rotas ativas em todo o país, segundo a Heritage Railway Association, incluindo linhas que ligam cidades litorâneas e percorrem as Terras Altas escocesas.
A linha Keighley and Worth Valley é uma das muitas mantidas exclusivamente por voluntários. Foi inaugurada em 1867, principalmente para transportar carvão para os inúmeras fábricas de tecido que existiam ao longo do vale. Durante quase um século, a ferrovia transportou cargas e passageiros, mas o uso caiu com o aumento do número de automóveis e o declínio industrial, e a linha foi fechada em 1962. Logo depois, moradores locais e entusiastas de locomotivas fundaram a Keighley and Worth Valley Railway Preservation Society, que reabriu a ferrovia em 1968.
Embora a maioria dos passageiros hoje sejam turistas, moradores ainda utilizam a linha para se deslocar pela região, que fica nos arredores de Bradford, uma cidade no norte da Inglaterra com cerca de 550 mil habitantes. Este ano, Bradford foi designada Cidade Britânica da Cultura, título concedido a cada quatro anos que traz financiamento extra do governo para organizar uma programação de eventos.
Em 2025, Bradford recebe o Turner Prize, o prestigioso prêmio de arte britânico, além de exposições, sessões de cinema e espetáculos teatrais — com “Os meninos e a ferrovia” como um dos destaques da agenda.
“É uma oportunidades para comunidades locais desfrutarem de arte e artistas de renome internacional em nossos teatros, nossas galerias, nossas ruas — e em nossos trilhos”, disse Shanaz Gulzar, diretora criativa do Bradford City of Culture.
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