Museu sobre trilhos

É o único museu móvel do mundo. Nele, o passeio, os barulhos de apito e do guincho de metal se chocando contra metal, o cheiro de madeira envernizada e as colunas de fumaça branca que saem das engrenagens fazem parte do acervo. A maria-fumaça que liga as vizinhas cidades mineiras de São João delRei a Tiradentes atravessa a linha de menor bitola (distância entre os trilhos) do mundo (76 centímetros), em um percurso de 12 quilômetros.

Uma viagem rápida, de meia hora. Mas que pode significar também um recuo de mais de cem anos no tempo, quando as ferrovias começaram a ser construídas, no reinado do imperador Pedro II. Pode evocar lembranças de uma vida, se o passageiro for contemporâneo da época em que o transporte de passageiros era comum. Ou pode durar do século XVIII ao XXI, ao unir a São João del Rei em que igrejas antigas dividem espaço com prédios modernos à Tiradentes de ruas e casario antigo ainda preservados.

Alinha por onde, de sextafeira a domingo, duas vezes por dia, a maria-fumaça puxa 11 vagões de passageiros, em um trajeto de ida e volta, está ativa há 126 anos: foi inaugurada em 25 de agosto de 1881 por Dom Pedro II. As transformações por que ela passou são mostradas na estação de São João, onde um museu ferroviário exibe vagões de transporte de valores (com grades nas janelas), de animais e locomotivas com os mecanismos de funcionamento à mostra.

Entre as peças antigas usadas na manutenção e os adornos das locomotivas, há uma curiosidade que mostra o clima do fim do Império: uma foto de monarquistas tentando invadir o Grande Hotel, na cidade, para atacar o político republicano Silva Jardim (o advogado escapou desta para ter um fim bem pior, em 1891: foi tragado por uma fenda que se abriu quando visitava o Vesúvio, na Itália, e o vulcão entrou em erupção).

O museu não se limita à gare da estação. Há também um programa de visitas guiadas, às 9h15m e às 14h15m, na rotunda da estação, onde ficam as locomotivas usadas na linha (você não pensou que era só uma, pensou? Uma só não agüentaria o tranco) e o girador — um buraco circular onde a maria-fumaça é girada em cima de um trecho de trilho, trabalho feito por apenas dois funcionários. Só assim ela muda de sentido e inicia uma nova viagem, de volta à estação de onde veio (Você achava que o trem fazia a curva? Também não dá).

Incorporação do trem à rotina faz morador reclamar até de apito novo

Há pouco tempo, os funcionários da estação de trem de São João del-Rei começaram a atender o telefone para ouvir uma reclamação sobre apito que soava do trem na sua partida. Não que ele estivesse muito alto, muito estridente. Isso ele está há 126 anos. Ele estava diferente.

A diferença foi causada pela troca do apito da locomotiva número 22, a mais velha das marias-fumaças usadas na estrada de ferro — tem 99 anos. A troca mudou o tom do ruído, e muito morador ficou incomodado com esta alteração de sua rotina.

O caso mostra o quanto a locomotiva está integrada ao cotidiano de São João del-Rei. Ainda hoje, a passagem dela, em direção a Tiradentes, é observada por moradores ao longo da linha, que param de fazer o que estiverem fazendo. Crianças acenam e algumas saem correndo: é inevitável atração pelo engenho, num estado onde “trem” tem também o significado de “coisa”.

Durante o trajeto, passa-se pelo Rio das Mortes — que ganhou este nome porque muitos se afogaram tentando atravessálo, no início da colonização de Minas Gerais, e não por algum massacre que teria havido durante a Guerra dos Emboabas, no início do século XVIII, como se acredita. Mas não é a História que ressoa na cabeça durante a viagem.

O que a paisagem transmite é o prazer da vida mais calma e idílica do interior, à medida que se vêem árvores, animais e homens isolados no prado que margeia a ferrovia. A contemplação só é quebrada pela chegada do bilheteiro, vestido como antigamente — terno azul e quepe.

Ah, um lembrete para não

Fonte: O Globo