Carlos Lessa, economista
O Brasil tem uma péssima matriz de transporte de mercadorias e de pessoas. A modalidade rodoviária cumpre o papel de ligação entre as diversas regiões do país e não apenas tem um peso excessivo nas toneladas quilômetro (TKU) transportadas como também, ao longo dos anos, vem crescendo o percurso médio por tonelada produzida. O transporte por trilhos para o deslocamento inter e intraurbano de pessoas é insignificante. A maioria esmagadora dos deslocamentos é feita por veículos motorizados movidos a derivados de petróleo. A modalidade rodoviária tem custos duas a três vezes superiores à ferroviária, que é maior que a aquaviária.
Cerca de 80% da população brasileira é urbanizada e mais de 50% estão nas dez regiões metropolitanas do país. O crescimento da frota de veículos motorizados é maior do que a capacidade das cidades de providenciar melhoras no sistema de circulação urbana, o que faz com que nas regiões metropolitanas brasileiras as pessoas gastem, em média, mais de duas horas de deslocamento residência-trabalho-residência. Um bom sistema de transporte coletivo sobre trilhos seria uma forma de reduzir o desperdício existencial derivado do congestionamento de trânsito.
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Nada é mais prioritário para o desenvolvimento brasileiro do que a mudança na matriz de transporte, fazendo crescer a participação ferroviária e aquaviária no transporte de mercadorias. O Brasil deveria restaurar a navegação de cabotagem – temos 7500 km de costa e três bacias fluviais – e instaurar eixos ferroviários inter-regionais, integrando as regiões Norte e Nordeste com o Centro-Sul e o Sudeste, bem como instalar sistemas de transposição de modalidades. Ao rodoviário, caberia o papel de rede de alimentação dos grandes eixos ferroviários e aquaviários. Suponhamos que, com isso, em cinco anos, o custo logístico recuasse dos atuais 13% sobre o PIB para 8,9% (padrão norte-americano). O significado dessa “revolução tecnológica” será aumentar a produtividade de todas as atividades econômicas brasileiras.
A redução dos custos monetários e existenciais ampliaria muito o poder de compra dos brasileiros; seria um choque positivo de produtividade que ampliaria o mercado interno e seria o motor da dinamização do país. Ao invés de nos propormos um Brasil exportador, teríamos – derivados da maior produtividade e da ampliação de mercado interno – produtos exportáveis com maior competitividade.
Entre 1969 e 2008, a malha rodoviária cresceu 180% em quilômetros, enquanto a quilometragem ferroviária se contraiu 14,5% e a navegação se atrofiou, dando uma insignificante contribuição logística, apesar de nossos portos e terminais terem ampliado significativamente a movimentação de cargas. Com algum exagero, estamos retomando o padrão primário-exportador da República Velha, com a diferença que os portos, no passado, eram alimentados por ferrovias, e agora são pelas rodovias. É um absurdo que a soja do Centro-Oeste seja transportada por caminhões até Santos ou Paranaguá.
A longa estagnação da economia brasileira fez com que investimentos em transporte caíssem dos 2% do PIB na década de 60, para o percentual insignificante de 0,5% do PIB (2008), resultado atual do PAC, que melhorou o quadro entre 2006-2008. Após 2003, primeiro triênio do atual governo, os transportes obtiveram, em média, apenas 0,3%/PIB. Durante a “Década Perdida” e os Anos FHC, a média ficou ao redor de 0,2%. Há uma degradação sistêmica da rede de transporte com orçamentos de manutenção mutilados em nome do superávit primário e do pagamento devastador de juros de dívida pública. Todas as mazelas se refletem na ampliação do custo dos fretes reais.
A integração logística é indispensável para o Brasil. Construímos Brasília e sua rede rodoviária em quatro anos. A soja e a carne tiveram seu impulso, apesar da armadilha rodoviária. É espetacular a produtividade interna dos estabelecimentos agropecuários brasileiros que, apesar dos fretes exagerados, mantêm competitividade internacional. Entretanto, é preciso que a ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres – explicite com urgência as suas prioridades.
O projeto do trem-bala entre Rio, São Paulo e Campinas é um exemplo de baixa prioridade. O trem-bala custará R$ 34 bilhões, aproximadamente o dobro do custo final da Hidrelétrica de Itaipu. Com os recursos do trem-bala, seria possível construir 48 km de metrô, equivalente ao de São Paulo; seria possível à Supervia instalar um metrô de superfície de alta qualidade usando os canais ferroviários das extintas Central e Leopoldina, com menos de US$ 1 bilhão por quilômetro (60% da população do Rio residem nos subúrbios). Praticamente todas as regiões metropolitanas brasileiras dispõem de canais de tráfego para instalar metrôs de superfície.
A opção pelo trem-bala, entre Rio e São Paulo, supõe uma viagem de 518 km em 1h30min, com um custo de R$ 150, na classe econômica, e R$ 200 na executiva (horário de pico). Em nada contribuirá para a superação dos congestionamentos de trânsito no Rio ou São Paulo: as mercadorias continuarão a ser transportadas por caminhões pela Via Dutra, trecho por onde passam também as mercadorias que se deslocam por caminhões do Sul ao Pará.
Não dominamos a tecnologia do trem-bala. O estudo de viabilidade, que poderia ser feito por consultoria nacional, foi encomendado à empresa britânica Halcrow. A China está excitada por fazer mais um “negócio da China” com o Brasil: o futuro petróleo do pré-sal, que a China quer importar em bruto, alimenta as aspirações chinesas. Frente às atuais necessidades logísticas, o trem-bala não tem sequer a prioridade que o prefeito do interior com frequência destina ao chafariz iluminado em sua praça principal.
Espero que o trem-bala não esteja articulado à Copa de 2014. Considero prioritários bons e modernos estádios de futebol e dispenso o trem-bala para um futuro pós-integração efetiva do Brasil. Continuarei fiel à modalidade aeroviária em minhas visitas a São Paulo, sempre oneradas por um terrível desperdício de tempo nos congestionamentos cariocas e paulistanos. O trem-bala já começa projetado para a discriminação entre o “passageiro econômico” (pobres joelhos!) e o executivo.
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