Até o fim do ano passado, era só discórdia e desconfiança. A Rumo, o braço de logística do grupo Cosan, comandado pelo empresário Rubens Ometto, vivia em um estágio de litígio agudo com a América Latina Logística (ALL), que opera os principais trechos da malha ferroviária brasileira. Litígio, na verdade, é modo de dizer. As duas empresas estavam engalfinhadas em uma disputa visceral, em torno de um contrato firmado em 2009.
De repente, o vento virou. Em abril, a cúpula da ALL aprovou um processo de fusão, por meio do qual aceitava, sem delongas e por ampla maioria, ser incorporada à Cosan. Simples assim? Nem tanto. A narrativa dos bastidores dessa negociação mostra que esses dois gigantes da economia nacional estavam atados pelo pescoço em torno do acordo, assinado cinco anos atrás. Qualquer movimento em falso de uma companhia asfixiaria a outra. Mantida a guerra, só restariam derrotados – e um prejuízo bilionário.
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É por isso que o primeiro personagem a entrar nesta história é justamente o contrato de 2009. (Executivos da Cosan, envolvidos na negociação, referem-se ao documento como o “malfadado”.) O acordo, quando foi concebido, embutia uma ideia ao mesmo tempo simples e lucrativa. Era do tipo ganha-ganha. Uma baba. A Rumo comprometia-se a injetar R$ 1,2 bilhão na malha da ALL. Em contrapartida, conquistava a garantia do transporte do seu açúcar pelo interior paulista até oporto de Santos.
A ALL, portanto, receberia locomotivas, vagões, trilhos e dormentes. A Rumo, por sua vez, espantaria do seu negócio o pesadelo embutido no caótico escoamento de commodities no Brasil. Parecia lindo. E era. Mas deu tudo errado. O contrato transformou-se em cabo de guerra entre as companhias. A briga foi além do diz que diz: terminou em uma câmara de arbitragem, em outubro de 2013.
A Cosan alegava que investira os valores combinados. As obras, no entanto, não foram executadas. Elas previam a duplicação da linha férrea entre Itirapina (SP) e Santos. A ALL defendia-se alegando que enfrentara problemas com a obtenção de licenças ambientais para concluir o segmento. No meio do caminho, havia uma tribo indígena. Armou-se o barraco. Um executivo do grupo de Ometto chegou a afirmar que a ALL fazia corpo mole para transportar o açúcar daRumo para priorizar cargas de grãos oriundas do Centro-Oeste, com rotas mais longas e, portanto, mais rentáveis.
Um timaço de “tratores”
Foi no meio desse tiroteio que entrou em cena Carlos Alberto Sicupira, o Beto, como é conhecido no mercado. Beto Sicupira dizia a interlocutores estar incomodado com o impasse entre a ALL e a Cosan-Rumo. Ele havia sido um dos principais acionistas da ALL, ao lado de Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles. Os três entraram no ramo de ferrovias no fim da década de 90, após a privatização do setor, quando eram sócios na GP Investimentos, a empresa de private equity. Em 2009, o trio vendeu a sua participação na companhia para a gestora de fundos BRZ.
Beto Sicupira não mergulhou na negociação, mas foi ele quem acionou Pércio de Souza, outro peso-pesado da paisagem corporativa nacional. Souza é o dono da Estáter, conhecida como uma “boutique de negócios” (seja lá o que isso signifique). Na prática, ganhou notoriedade ao criar equações financeiras, capazes de solucionar conflitos entre grandes corporações. É conhecido por ter assessorado o empresário Abilio Diniz em episódios complexos como a chegada do Casino ao Brasil, além dos processos de aquisição do Ponto Frio e da Casas Bahia. Não por acaso, era chamado de o “banqueiro do Abilio”.
Rumo-ALL
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Àquela altura, o impasse entre a Cosan-Rumo e a ALL lembrava o pátio de uma concessionária de máquinas agrícolas – acumulava executivos tidos como verdadeiros “tratores” em suas áreas de atuação. Além de Sicupira, Souza e Ometto, amealhava ainda nomes como Wilson de Lara, presidente do conselho da ALL e um dos principais acionistas da empresa. Todos tinham em comum a discrição e personalidades fortes, o que lhes conferia fôlego para o debate.
Clima de ceticismo
A aproximação entre os litigantes, entretanto, não foi fácil. Um membro da cúpula da ALL, que não quis se identificar, reconhece que o clima entre as duas partes era de pesado ceticismo. Ninguém acreditava em uma solução negociada para o problema, que se arrastava havia meses.
O bloco de controle da ALL também estava rachado. De um lado, na margem pró-acordo com a Cosan, ficavam Wilson de Lara e os investidores Riccardo e Julia Arduini. Lara, aliás, havia concordado com a fusão desde 2012, quando Ometto fez uma primeira proposta para encampar a ALL. A turma da Cosan afirma que, desde então, já antevia problemas no cumprimento do contrato.
Na margem oposta, estavam a gestora BRZ (com cotistas como Petros, Postalis e Valia), além dos fundos Previ, Funcef e o BNDES. A gestora BRZ, por exemplo, não tinha o menor interesse no acordo. Em tese, nutria planos de fazer investimentos conjuntos com a ALL em portos, um setor no qual a Rumo já atuava.
Ninguém podia ceder
O dissenso não era o único problema. Na verdade, o primeiro esboço de solução para o impasse mostrou-se infrutífero. A ideia inicial era focar no contrato de 2009, o “malfadado”. Uma revisão do documento poderia identificar um meio do caminho, um ponto em que os dois lados cedessem, e funcionasse como uma ilha capaz de apaziguar os grupos em conflito. Depois disso, em um ano ou mais, a discussão seria encaminhada para uma proposta de mudança societária – uma fusão. Essa hipótese, porém, seria deixada para os últimos rounds de uma longa luta, quando os antagonistas, exaustos, entram em clinch e só conseguem trocar socos bobos no meio do ringue.
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