Em dez anos, população de menor renda migra para o carro e mais ricos adotam metrô na Grande São Paulo

Em uma década, as pessoas de mais baixa renda da região metropolitana de São Paulo passaram a andar mais de carro e moto em suas viagens diárias, enquanto as de renda mais alta estão usando mais o metrô. Entre famílias de rendimento mensal médio entre R$ 2 mil e R$ 3,8 mil, as viagens feitas de carro tiveram um crescimento de 82% entre 2007 e 2017 e as de moto, de 77%. Já entre aquelas com renda média mensal superior a R$ 11,4 mil, o total de viagens feitas de carro caiu 49%, enquanto o uso do metrô subiu 5,7%.

Os dados são da Pesquisa Origem Destino, do Metrô, e refletem nas ruas, segundo especialistas, uma década de políticas descoordenadas dos governos municipal, estadual e federal, que terminaram por massificar o uso de meios de transporte individuais – tidos como as principais causas de congestionamentos, acidentes e poluição – e reduzir o uso do ônibus.

A pesquisa é resultado de 156 mil entrevistas feitas com o objetivo de mapear o comportamento das viagens na região metropolitana e que fazem também um detalhado retrato da situação socioeconômica dos 39 municípios que formam a área. O estudo é repetido uma vez a cada dez anos desde 1967. Uma das conclusões é que a região empobreceu. Após anos de estagnação e crise econômica, a renda média mensal das famílias da Grande São Paulo é de R$ 3.607, 11,5% menor do que há dez anos (R$ 4.075, em valores corrigidos).

Olhando para o transporte, mesmo na crise, o número de viagens aumentou 10,3% (de 38 milhões para 42 milhões por dia), proporção maior do que o crescimento da população (6,9%, de 19,5 milhões para 20,8 milhões de pessoas). Mas essa alta varia de acordo com o meio de transporte e a faixa de renda, e considera uma série de fatores, como a redução do trabalho formal e o aumento, de 4% para 12%, da proporção de trabalhos que não têm um local fixo.

A pesquisa aponta que, no período, houve aumento de 3,3% no número de empregos na Grande São Paulo (de 9 milhões para 9,4 milhões de vagas). A comparação com a década passada mostra uma manutenção da dinâmica que já era presente na região: a concentração dos postos de trabalho no centro expandido, a região entre os Rios Tietê e Pinheiros e as Avenidas dos Bandeirantes e do Estado. Nesta “ilha” no centro da Região Metropolitana estão 64,1% das vagas. Houve uma pequena oscilação em relação à pesquisa anterior, quando esse pedaço central mantinha 65,4% dos postos. Uma consequência direta foi a manutenção do centro como destino majoritário das viagens a trabalho.

“De um lado, você teve um abandono nos investimentos para os ônibus, sem obras para novos corredores, e uma política de reajuste das tarifas (acima da inflação) por parte da Prefeitura. De outro, houve uma política de facilitar a aquisição de carros (feita pelo governo federal). E o investimento em metrô (feito pelo Estado) foi em uma região que já era rica, o que facilitou o acesso da população de maior renda”, afirma o geógrafo Rafael Calabria, pesquisador de mobilidade urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). O investimento em metrô que ele cita é a Linha 4-Amarela, que liga o centro à zona oeste da capital cruzando bairros como Higienópolis, Jardins e Pinheiros.

Segundo Calabria, criou-se um cenário que acentuou as desigualdades: enquanto uma parcela da população mais pobre, moradora dos bairros mais afastados, teve acesso ao primeiro carro na década passada (houve aumento de 42% no número de famílias com automóvel em casa, de 2,1 milhões para 3 milhões de lares), as pessoas de maior renda estão em um momento posterior ao carro, um cotidiano mais próximo do de países desenvolvidos.

Para os moradores de Pinheiros, o novo ramal de metrô serviu para deixar a cidade mais acessível. Moradora do bairro há 15 anos, a professora de Mídias Sociais Márcia Marques, de 60 anos, incorporou os trilhos à rotina e usa a linha para ir ao trabalho e também para o lazer. “Aos fins de semana, vou no cinema, na Paulista, de metrô”, conta. Dez anos atrás, ela tinha outro emprego e usava o carro para trabalhar. “Sempre fui defensora do transporte público, usava ônibus. Da minha rua, é só subir um pouco para chegar no ponto.” Ainda antes de a Estação Fradique Coutinho, a mais perto dela, ser aberta, a professora já usava a Linha 4, para onde ia de ônibus, para se deslocar pela cidade.

Enquanto o crescimento do número de viagens motorizadas, na região metropolitana como um todo, foi de 12,4%, as viagens feitas de metrô com destino aos bairros ao redor da linha subiram de 276 mil para 413 mil por dia (54%). A Linha 4-Amarela, entretanto, está longe de ser benéfica só para os bairros centrais. Ela facilitou conexões entre as demais linha de metrô e dos trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). O uso dos trilhos cresce também nas faixas de renda mais baixas.

Os dados mostram aumento do uso de metrô na parte oeste e noroeste da Região Metropolitana, que foram beneficiadas pela Linha 4. A expansão da Linha 2-Verde, que na última década também trouxe mais gente da zona leste e do ABC para os trilhos subterrâneos, também resultou em mais viagens partidas dessas regiões.

“A Linha 4 é a primeira a criar uma ‘rede’ para o metrô. As Linhas 1, 2 e 3 já tinham conexões, mas agora há uma rede. Claro que ainda está longe de ser como Nova York ou Paris, mas é a primeira virada nesse sentido. Foram investimentos que mudaram o patamar do metrô. Antes, a Linha 2 era quase vazia”, diz o professor Ciro Biderman, de Administração Pública e Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que formulou políticas de mobilidade para as gestões Fernando Haddad (PT) e João Doria (PSDB).

Com essa cara maior de “rede”, o transporte sobre trilhos manteve o poder de atrair passageiros, inclusive disputando a preferência com o automóvel. O administrador José Ivanildo Feitosa, 55 anos, fez o teste e desistiu do carro. Hoje ele usa um ônibus, um trecho de metrô e duas linhas de trem para ir de casa, em São Caetano, até o serviço, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital. Ele chega em menos tempo do que se dirigisse por todo o trajeto, como era o caso há cerca de dois anos. A viagem leva 55 minutos sobre os trilhos e mais 15 minutos no ônibus. Antes, em média, ficava 1h40 dentro do carro.

“Posso te falar dez motivos pelos quais troquei o carro pelo trem: tempo, estresse, manutenção do carro, consumo de gasolina, roubo, enchente, e por aí vai”, diz Feitosa, que foi convencido a testar o transporte público por outros dois amigos que também se deslocam diariamente da região do ABC até a capital.

O professor Biderman destaca ainda um “facilitador” para o uso da nova linha entre a população de maior renda, que não usava transporte coletivo antes: os aplicativos. “A presença deles faz a pessoa usar mais transporte público. Se choveu, se aconteceu algum problema, a pessoa pode pedir um (carro pelo) aplicativo”, diz. “É um complemento da viagem de metrô.”

É Pinheiros o bairro onde há mais pedidos de viagens por aplicativos. Ali, usuários contam que o app é acionado em várias situações diferentes, desde viagens curtas a trabalho até a volta para casa. A profissional de RH Suellen Dombrowchi, de 35 anos, chega a pedir corridas diariamente nos períodos em que tem de visitar clientes para os treinamentos que a empresa onde trabalha oferece. As corridas saem do escritório na Rua João Moura, no quadrilátero onde mais se usam os aplicativos em todo o bairro.

“Em alguns meses do ano, usamos o Uber todo dia, sem falta”, conta Suellen, que também pega caronas no aplicativo no dia a dia. “Como eu tenho moto, não consigo levar meus gatos no médico, por exemplo. Tenho de ir de Uber para isso. Não uso táxi, só Uber.”

Esta é a primeira pesquisa que trata do uso dos aplicativos na Região Metropolitana – e aqui, os apps são classificados como transporte individual. Os dados preliminares da Origem Destino, divulgados em dezembro passado, já mostravam que, para cada corrida de táxi na cidade, havia três viagens por aplicativos. Os dados revelam que mulheres são as que mais pedem app. E o principal motivo é ir para casa.

É o caso da publicitária Mariana Saad, de 25 anos, que também trabalha em Pinheiros. Ela chega até lá de carona e, diariamente, usa o aplicativo para ir embora – às vezes custeado pela empresa, quando ela fica no serviço até depois das 21 horas, mas geralmente solicitado por conta própria.

“Eu uso todo dia”, conta Mariana, que mora na região do Metrô Ana Rosa. Ela diz que os morros na região e a falta de opções estimulam o uso do aplicativo. “Aqui é o lugar onde eu pego mais Uber, na verdade. Eu sempre trabalhei em lugares que tinham (estações de) metrô mais perto do que aqui, e também mais perto de casa.”

O cenário induzido pela ampliação da malha do Metrô, entretanto, não foi capaz de fazer com que o uso de transporte público crescesse. Proporcionalmente, o uso hoje é menor do que na última Origem Destino, de 2007. A pesquisa feita em 2017 apontou uma oscilação para cima, de 44,7% para 45,9% do total de viagens feitas na Região Metropolitana, ao passo que o uso do transporte público caiu de 55,3% para 54,1%.

O promotor de vendas Jonathan Ribeiro, de 30 anos, é uma das pessoas que deixaram de usar ônibus e metrô e adotaram a moto para chegar ao trabalho. Morador de Guaianases, na zona leste, ele agora leva a metade do tempo, pela metade do preço, para se deslocar ao trabalho, na Praça da Sé.

A economia no gasto com o transporte – de R$ 330 no Bilhete Único Mensal para R$ 150 com gasolina – equivale a 10% de seu salário. O tempo médio de viagem foi de 1h30 para 35 minutos.

“Eu conheço muita gente que tem a moto só para vir trabalhar, como é o meu caso. Tem gente que vinha com carro, ou com transporte (público), que não aguentava mais”, conta Ribeiro, que já tinha uma motocicleta, mas só passou a usá-la no deslocamento diário no início do ano. “A pessoa poderia sair de casa com uma hora ou uma hora e meia de antecedência e chegar no horário, mas, devido a esses transtornos que acontecem diariamente no metrô, no transporte, ela tem de sair duas horas e meia antes do seu horário. Se não, chega atrasado.”

O aumento do transporte individual foi observado em 32 das 39 cidades da Região Metropolitana de São Paulo. Em 17 municípios, a população hoje faz menos viagens de transporte coletivo do que dez anos atrás. O vilão, como apontou Ribeiro, é o ônibus. Como meio de transporte principal, esse modal teve uma redução de 8% nas viagens (de 9 milhões para 8,3 milhões por dia). Contando o uso do ônibus como parte da viagem, integrada a outros meios, como o metrô, ele até teve aumento, de 4% – um patamar mais baixo do que o crescimento vegetativo.

Como apontou o geógrafo Calábria, do Idec, a saída dos passageiros, especialmente das classes mais baixas, está relacionada à falta de investimentos no modal. “Você teve as faixas exclusivas, que são importantes, mas só isso não basta.”

Essa inversão de movimentos preocupa os especialistas ouvidos. O engenheiro civil Luis Antonio Lindau, pós-doutor em Transportes pela University College London e diretor do instituto de pesquisas WRI Brasil, destaca que a saída em massa dos passageiros do transporte público cria o “ciclo de morte do transporte coletivo”.

“Com a saída dos passageiros, o financiamento do transporte se reduz, tornando o serviço mais caro e, consequentemente, afastando mais gente”, explica Lindau. “Com mais carros, temos mais congestionamento. E os ônibus ficam presos no trânsito, o que demanda mais ônibus.” Segundo ele, com isso, os custos aumentam e há menos gente para rachar a conta.

Lindau destaca ainda outros fatores, como aumento dos acidentes de carros, e, em especial, de motos, trazidos pelo incremento do uso de meios de transporte individuais. “O número de sequelados, que não podem mais trabalhar, é enorme entre as vítimas de acidentes de moto”, afirma.

O engenheiro destaca a importância de se investir em metrô e trens, mas alerta que o estímulo ao uso de transporte público mais barato para o Estado passa por melhorias nos coletivos e nas calçadas, uma vez que o trajeto a pé é parte da viagem. Segundo a pesquisa, o número de viagens a pé cresceu 12,4% em dez anos, de 25,1 milhões para 28,3 milhões por dia. “O estímulo para o transporte a pé é a melhoria nas calçadas. E o passo seguinte é o investimento em ciclovias, em avenidas, para estimular as viagens de bicicletas”, afirma.

As bicicletas são outro destaque na pesquisa Origem e Destino. No dado global, em toda a Grande São Paulo, o modal teve um aumento de 24% nas viagens, de 307 mil para 377 mil viagens por dia. O destaque é para as famílias de alta renda, acima de R$ 11 mil mensais, em que o aumento foi de 275%.

A advogada Alessandra Rangel, de 42 anos, ainda lembra do dia em que resolveu trocar o carro pela bicicleta. Foi há cerca de um ano, em uma tarde em que ficou mais de uma hora presa no trânsito, para completar um trajeto de cinco quilômetros. O engarrafamento travou a região da Avenida Faria Lima, na zona oeste, onde Alessandra trabalha há dez anos. O uso da bicicleta aumentou 1.173% nesse período, por pessoas que fizeram a mesma opção.

“Mudou a minha vida”, conta a advogada, que hoje usa a bike ao menos quatro vezes por semana, em um trajeto que dura 20 minutos. “Minha saúde melhorou bastante, eu tenho mais disposição. Eu sempre fiz esportes, mas hoje rodo sete quilômetros de bike por dia.”

A diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, Angélica Benatti Alvim, destaca que o cenário acentua as necessidades de um planejamento metropolitano, articulado entre as cidades da região, de modo a induzir investimentos públicos nas áreas que ficaram de fora da expansão do Metrô – e onde as pessoas migraram para o carro. Para ela, linhas e estações têm potencial de induzir para onde haverá crescimento na cidade. “Elas devem promover novas centralidades e não só reforçar as que já existem.”

Angélica cita a importância de uma política de urbanismo. “Fortalecer, ao longo das estações, principalmente metrô e trem, novas centralidades, para que se tenha oferta de trabalho, educação e lazer melhor distribuídos pela metrópole”, afirma. “Você ainda tem municípios muito dependentes do pólo, São Paulo, ou cidades de grande porte na Região Metropolitana. É preciso diminuir essas distâncias, criar outras centralidades.”

A análise se dá no contexto do fechamento da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), que tem justamente a função de articular planos de desenvolvimento conjuntos para a metrópole. O fim da Emplasa foi aprovado pela Assembleia Legislativa e aguarda decisão do governador João Doria (PSDB), que vem tomando medidas para enxugar a máquina pública.

Fonte: https://www.estadao.com.br/infograficos/cidades,em-dez-anos-populacao-de-menor-renda-migra-para-o-carro-e-mais-ricos-adotam-metro-na-grande-sao-paulo,891385

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