Eram 22h30 do dia 20 de setembro, uma sexta–feira, quando a reportagem da Revista Ferroviária chegou ao pátio Vila Sônia, no extremo Oeste da cidade de São Paulo. As instalações integram o Centro de Operações da Linha 4-Amarela do Metrô de São Paulo, que atualmente liga o bairro da Luz, no coração da capital paulista, ao Morumbi, na Zona Sul. O local, além de servir como ponto de repouso e manutenção para os 24 trens que circulam na linha, também abriga instalações, como o Centro de Controle Operacional, Centro de Monitoramento de Segurança e Centro de Treinamento de Operadores. Ali também funcionará a estação Vila Sônia, última parada da Linha 4-Amarela de acordo com o projeto de Parceria Público Privada (PPP), e que deve ser entregue em dezembro de 2020.
A ida ao pátio Vila Sônia foi a primeira etapa de uma visita às instalações da Linha 4-Amarela, que antecedeu o que seria o grande evento do dia, o acompanhamento de uma troca de trilhos, a primeira realizada desde o início das operações da linha, em outubro de 2011. O trabalho
estava previsto para acontecer entre 0h45 e 3h30, após o fechamento das estações e encerramento das viagens. O trecho onde aconteceria a troca está localizado entre as estações República e Luz, na região central da cidade.
A Linha 4-Amarela foi construída pelo governo de São Paulo e está sob concessão da ViaQuatro, empresa do Grupo CCR. É a linha que colocou em operação pela primeira vez no Brasil o sistema driverless, ou seja, os trens circulam sem maquinista. Atualmente, 10 estações estão em funcionamento, transportando 800 mil pessoas por dia. Com a inauguração da estação Vila Sônia, a expectativa é que esse número salte para 1 milhão/dia.
Acompanhado da equipe de comunicação da ViaQuatro, a reportagem adentrou as instalações. A primeira tarefa foi vestir os equipamentos de segurança – capacete, botas, óculos e colete refletor. São EPIs obrigatórios para circular pelos trilhos da Linha 4-Amarela. Fomos recebidos pelo engenheiro André Luís Mouta Ferreira, coordenador da Equipe de Manutenção, responsável pela via permanente e rede aérea. Bem humorado, nos levou a uma sala, onde apresentou um slide com informações sobre o funcionamento geral da Linha 4-Amarela e alguns dados técnicos, como bitola, raios mínimos dos trilhos na Linha 4 (300 metros na via e 100 metros no pátio) e rotina de manutenção. Funcionários dos setores de manutenção civil e segurança do trabalho também acompanharam a explanação.
Mouta explicou que a troca de trilhos precisa ser feita a cada 10 anos. Portanto, uma troca convencional deveria acontecer apenas em 2021. O que aconteceria naquele dia seria um caso atípico. A troca foi definida devido a desgastes nos trilhos entre as estações República e Luz. O problema foi identificado por meio de um equipamento de varredura por ultrassom. Segundo Mouta, por ser um trecho em curva, o sistema de rodas dos trens faz pressão maior em uma parte do trilho, desgastando-o mais que em outros trechos. O coordenador afirmou que esse desgaste não seria capaz de gerar riscos, mas a ViaQuatro optou por realizar a troca de forma preventiva.
Embora o desgaste tenha sido identificado apenas em um lado do trilho, o trabalho preventivo contemplaria os quatro trilhos do trecho: tanto os dois utilizados pelos trens no sentido Luz quanto os dois dedicados ao sentido contrário (São Paulo-Morumbi). Trilhos com idades diferentes geram problemas na dureza do material. Por isso, temos de fazer a troca integral, ponderou Mouta.
Rotina de manutenção
A companhia tem uma rotina intensa de manutenção na via. Semanalmente, é feita uma inspeção visual nos mais de 12 km entre Vila Sônia e Luz (embora a última estação não tenha sido entregue, todo o trecho de trilhos já foi implantado). Quinzenalmente, é feita a limpeza dos trilhos, com remoção de resíduos, enquanto uma vez por mês é feito o esmerilhamento, em que o trilho é limado e aplainado, se necessário. A medida garante que o contato entre o trilho e as rodas dos trens seja feito de forma segura e confortável.
As demais rotinas são mais espaçadas e complexas. A cada três meses é feita a inspeção de ultrassom, que avalia a dimensão de microtrincas. Um equipamento (trolley) percorre a linha para fazer essa varredura. Semestralmente é feita a verificação de distância e, uma vez por ano, ocorre a medição de perfilamento. Esse trabalho visa conferir se o formato dos trilhos (ou perfil) está nas dimensões corretas ou se houve algum tipo de deformação com o tempo. A medição é feita pelo Calipri, uma máquina de varredura a laser. Em 2018, a ViaQuatro adquiriu o equipamento. Antes, levávamos três meses para fazer toda a análise. Hoje, realizamos a mesma leitura dos trilhos em uma semana.
A apresentação dos slides foi a última ação a ser realizada no pátio Vila Sônia. O próximo passo seria ir para a estação República, onde estava programada a troca de trilhos. O trecho, de aproximadamente 12 km, foi percorrido por carro (para frustração do repórter, que imaginava realizar o percurso em um Troller, pelos trilhos da Linha 4-Amarela). Infelizmente não será possível fazer o passeio por dentro, pois a vibração dos trilhos com a passagem do veículo pode prejudicar o trabalho de troca dos trilhos, explicou Mouta, como é comumente chamado por sua equipe.
O trecho percorrido de carro foi marcado por uma longa conversa sobre trens, metrôs, mobilidade urbana, trilhos e vagões. É um tema que agrada muito a Mouta, que está há mais de 9 anos na ViaQuatro. Ele começou a trabalhar na Linha 4-Amarela em julho de 2010, antes do início das operações comerciais. Quando vou viajar para o exterior, a primeira coisa que procuro é pelo metrô da cidade, confessa. Ele já visitou vários países do mundo, tanto a trabalho quando a lazer, e se diz impressionado com os sistemas de transporte nos países asiáticos, como China, Japão e Coreia do Sul. O metrô de Seul, por exemplo, é impressionante. Mas o coordenador não deixou de apregoar as qualidades da Linha 4-Amarela. São poucas as linhas de metrô do mundo modernas como esta.
Chegamos à Praça da República, um ponto importante do centro velho de São Paulo, por volta das 00h. Apesar do horário, ainda havia muitas pessoas nas ruas, entre trabalhadores se dirigindo para suas casas até boêmios que aproveitavam os prazeres da noite paulistana no começo do final de semana.
A equipe da ViaQuatro precisou correr contra o tempo para realizar o trabalho antes do início das operações na madrugada de sábado, dia 21 de setembro. A circulação de trens é encerrada diariamente às 0h20. Dez minutos depois, teve início os trabalhos de implantação de segurança elétrica, quando os sistemas de transmissão de eletricidade são desligados. Apenas com o encerramento desta etapa, às 0h45, é que a troca de trilhos começou a ser realizada. E o trabalho teria que ser encerrado até as 3h30, para que o sistema pudesse ser retomado às 4h da manhã (a circulação de trens tem início às 4h40).
No total, temos duas horas e 45 minutos para realizar a troca. Caso haja algum tipo de atraso, temos uma tolerância de 30 minutos, encerrando às 4h. Mas o objetivo é encerrar antes disso, disse Mouta. Para entrar em funcionamento novamente, o sistema precisa ser energizado, e isso leva de 30 a 40 minutos. Por isso a necessidade de terminar antes das 4h, ressaltou.
Troca de trilhos
Para cumprir a missão, uma verdadeira operação de guerra foi montada, em diversas frentes. Somente a preparação exigiu 14 noites de trabalho preliminar, incluindo a retirada dos trilhos do almoxarifado, transporte de equipamentos de solda, confecção de solda para barra longa, análise por ultrassom e o transporte para a via. A última etapa seria o transporte das ferramentas utilizadas na troca.
O transporte dos trilhos foi realizado por meio de trolleys e um locotrator, apelidado de loki, que circulam a uma velocidade máxima de 28 km/h. Eles percorreram a linha do pátio da Vila Sônia até o local de troca, entre as estações República e Luz. Foram ao todo 640 metros de peças trocadas, sendo 160 metros para cada para um dos quatro trilhos (dois trilhos para os trens no sentido Luz e dois o sentido São Paulo-Morumbi).
Os trilhos que compõem a Linha 4-Amarela são de diversos países, enquanto os utilizados na troca são de origem alemã. Da mesma forma como acontece com outros sobressalentes utilizados na manutenção, os trilhos são mantidos em estoque no almoxarifado e repostos à medida que necessário. Existe uma normatização internacional que garante a padronização das especificações de segurança e performance dos trilhos, comenta Mouta.
Para construir cada um desses quatro trilhos, foram utilizadas nove barras de metal, com cerca de uma tonelada cada uma, e medindo de 14 a 18 metros. As barras são formadas por uma combinação de 60% de aço e 40% de outras ligas metálicas. O trilho de 160 metros é montado e deixado ao lado da via para a realização do trabalho.
A reportagem acompanhou a troca do último trilho dos quatros segmentos. Trata-se do trilho que conduz as rodas do lado direito do trem que segue no sentido Luz, e que é chamado pela ViaQuatro de Trilho D. O trabalho é complexo, já que se trata de um trecho em curva. Mouta explicou que este é o trecho mais sinuoso de todo a Linha 4-Amarela. Por isso houve o desgaste neste trecho antes dos demais. Para realizar a tarefa, foi designado um verdadeiro batalhão, formado por 33 funcionários divididos em quatro equipes: uma para movimentação dos trilhos, uma de apoio e outras duas dispostas em cada extremidade para a implantação do novo trilho.
Por volta de 1h da manhã de sábado, chegou à estação o caminhão RDF-01, com uma mala de ferramentas e o restante de funcionários responsáveis pela troca de trilhos. Trata-se de um Ford 1722e Cargo, com capacidade para até 32 toneladas de carga. Adaptado para circular nos trilhos, ele possui dois eixos com pequenos rodeiros (frontal e traseiro). Acionados por sistema eletro-hidráulico, podem ser expostos, possibilitando o encaixe e movimentação sob trilhos na via permanente. Quando necessário, são recolhidos para movimentação e manobras tradicionais sob pneus.
Uma área de segurança foi delimitada para que a imprensa pudesse acompanhar o trabalho. Nessa região estavam também funcionários da equipe de manutenção, que acompanhavam o desenrolar das atividades. Samara Leite, supervisora de Manutenção Civil, informou que sua equipe passou quatro dias em treinamento para acompanhar o trabalho. É a primeira vez que acompanho uma troca de trilhos. É um trabalho intenso, comentou.
A coordenadora de Manutenção Civil, Renata Alexandre , presente no momento da troca se mostrou entusiasmada. Segundo ela, 12 integrantes de sua equipe estão ali atuando na madrugada. Funcionária da ViaQuatro desde 2011, ela afirma que adora o universo metroferroviário. Quando viajamos, sempre buscamos conhecer os trens. É um bichinho que morde a gente, disse.
Retirada e solda
Primeiramente, a equipe precisou retirar os elementos de fixação, como os grampos (grandes peças de metal que prendem o trilho) e amortecedores. Em seguida, ocorreu o corte nas duas extremidades. Chega então a fase de ação mais intensa, com a remoção do trilho antigo. Foram designados 13 pessoas para tal. O grupo realizou a retirada com o uso de cinco grandes alicates, sendo que cada um deles precisou ser operado por duas pessoas. Um dos funcionários utiliza um pé de cabra para auxiliar na movimentação do trilho. A cada trecho, houve um revezamento entre alguns dos colaboradores para manter constante o ritmo do trabalho. Tudo foi feito de forma rápida e esquemática, sem interrupções. Esse trilho será deixado ao lado da via, para ser cortado e removido, dentro das operações triviais de manutenção.
Com o trilho retirado, foi feita a mesma operação, só que em sentido contrário, para a colocação da nova barra. Nesta operação, a peça nova era um pouco maior que a antiga e o material excedente – cerca de 1 metro em cada extremidade – foi cortado para que o novo trilho pudesse ser encaixado no sistema.
Por volta de 1h50, foi realizado o trabalho de solda. Uma equipe especializada chegou ao local. A soldagem foi feita no sistema aluminotérmico, com o uso de oxigênio e a combinação de oito ligas metálicas. O material, fundido a uma temperatura de 2.500 graus Celsius, foi devidamente colocado em moldes implantados nas extremidades do trilho. Após a colocação da solda, o molde foi retirado e a mesma equipe realizou a limpeza e o esmerilhamento, em que o trilho é limado e aplainado enquanto a temperatura ainda estava elevada e, portanto, o metal permaneceu minimamente maleável.
A solda foi a última etapa da troca de trilhos propriamente dita. Às 2h30, o trabalho foi encerrado. As equipes guardaram as ferramentas e fizeram as últimas vistorias antes de deixar o local. Mouta comentou satisfeito que o trabalho foi encerrado bem antes do previsto. O trabalho foi feito em quatro etapas e a equipe RF acompanhou apenas a última parte dessa troca (trilho D). A equipe, em dias anteriores, já havia feito a troca os outros trilhos (A, B e C), mas dentro da mesma operação. Deixamos a via e seguimos para a plataforma da estação República, desviando das equipes de limpeza que também trabalhavam pesado durante a madrugada para manter tudo limpinho para os primeiros usuários.
*Reportagem publicada na edição de Novembro/Dezembro 2019 da Revista Ferroviária.
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