Projetos de privatização

As operadoras de sistemas urbanos sobre trilhos no Brasil são hoje, na maioria, empresas públicas federais ou estaduais. Mas tudo indica que nos próximos anos isso vai mudar. Privatização e Parcerias Público-Privadas (PPPs) dominam as discussões no setor ferroviário de passageiros, que já tem sob gestão privada sete sistemas/linhas, correspondendo a 335,7 km de trilhos (cerca de um terço do total, 1.105 km) e 206 estações distribuídas em São Paulo (ViaQuatro/Linha 4-Amarela e ViaMobilidade/Linha 5-Lilás – ambas do Metrô de SP); Salvador (CCR Metrô Bahia), Rio de Janeiro(MetrôRio, SuperVia e VLT Carioca) e Santos-SP (VLT da Baixada Santista).

Dos 22 sistemas sobre trilhos em operação hoje no Brasil, 15 estão sob administração pública. São os cinco da CBTU (Recife, Belo Horizonte, Natal, João Pessoa e Maceió), Trensurb, Metrô de São Paulo (linhas 1-Azul, 2-Verde, 3-Vermelha e, até o momento, a 15-Prata), CPTM, Metrô DF, Metrô de Teresina, os trens de subúrbio de Salvador, gerido pela Companhia de Transportes do Estado da Bahia (CTB), e os quatro sistemas de Fortaleza (Metrofor e os VLTs Parangaba-Mucuripe, Sobral e Cariri).Destes 15, nove (entre sistemas e conjunto de linhas) estão com projetos concretos de privatização. Os de Fortaleza não entram nessa lista, apesar de o governo do Ceará estar em conversas com o BNDES, para a elaboração de um estudo de viabilidade para concessão de todos os seus sistemas sobre trilhos.

Os cinco sistemas da CBTU e a Trensurb foram qualificadas no Programa de Parceria de Investimentos (PPI) e incluídas no Plano Nacional de Desestatização pelo governo federal em 2019; as linhas8 Diamente e 9-Esmeralda da CPTM serão concedidas juntas num processo que está em fase de audiência pública; o Metrô DF lançou em 2019 um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para colher estudos sobre a privatização do sistema. Os trens de subúrbio de Salvador serão desativados para dar lugar ao monotrilho, por meio de uma PPP já assinada entre governo do estado e o consórcio chinês Skyrail.

Quando se fala em obras em andamento ou no papel, os governos também esperam contar com a participação privada. Vem do estado de São Paulo a maioria dos projetos metroferroviários no Brasil que deve nascer sob o regime de concessão. Nesse grupo estão a Linha 6-Laranja, uma PPP assumida recentemente pelo grupo espanhol Acciona, cujas obras estão prometidas para ser retomadas esse ano; o Trem Intercidades, que prevê ligar a capital paulista a Campinas usando a Linha 7-Rubi da CPTM, que também deverá entrar no pacote de concessão; e a Linha 17-Ouro, do Metrô de SP, cuja operação será da ViaMobilidade assim que as obras forem concluídas pelo governo do estado. Já o Distrito Federal lançou no ano passado um PMI para realizar estudos para a implementação do VLT de Brasília em parceria com o capital privado.

Faltam recursos

A baixa capacidade de investimentos e a agenda liberal dos governos federal e estaduais podem explicar a guinada de projetos de concessão dos sistemas de transporte sobre trilhos pelo país. Mas, para o vice-presidente executivo da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), João Gouveia, a questão vai além. Os exemplos de parcerias entre os setores público e privado na área metroferroviária geraram bons resultados, segundo Gouveia. Ele lembra que a primeira concessão metroferroviária no Brasil foi a do metrô do Rio de Janeiro, em 1997, quando então surgiu a concessionária MetrôRio, responsável pela operação e manutenção dos trens e estações do sistema, hoje controlada pelo Grupo Invepar.

“Antes da concessão, o governo do Rio precisava aportar cerca de US$ 100 milhões anuais para garantir a operação do sistema. Com a privatização, o governo deixou de aportar tais recursos. A prorrogação da concessão em 2007 resultou em R$ 1,15 bilhão em investimentos da operadora em ativos como trens e estações, que passaram a pertencer à sociedade”, diz, citando também a primeira PPP do Brasil, que foi a Linha 4-Amarela, do Metrô de São Paulo, segundo ele, exemplo de qualidade em termos de operação e satisfação dos usuários.

Gouveia defende o avanço de investimentos na área, seja público ou privado, mas reconhece que, em caso de concessão ou de PPP, o governo deve trabalhar para reduzir riscos ao capital privado. “Numa PPP, geralmente, a estrutura é entregue nova à empresa. Já no caso de concessão de um sistema já existente, muitas vezes é preciso trabalhar redobrado para driblar as dificuldades de operar com equipamentos e material rodante obsoletos e trechos degradados. Acredito que deva existir um mecanismo em contrato para reduzir esses riscos, que pode ser um prazo maior de carência da outorga, por exemplo”, diz.

A questão dos riscos é um dos principais desafios que envolvem a privatização dos sistemas da CBTU e da Trensurb, segundo Jean Pejo, ex-secretário nacional de Mobilidade e Serviços Urbanos do Ministério do Desenvolvimento Regional. Pejo comenta que o BNDES foi autorizado a contratar estudos para avaliar individualmente
os sistemas da CBTU, colocando no papel a situação financeira, a estrutura e os riscos operacionais e de demanda existentes sobre cada um. “Não existe hoje um documento que mostre a situação detalhada de cada sistema. Como estão dentro do guarda-chuva da CBTU, temos apenas dados gerais”.

Com os estudos em mãos, a segunda etapa é realizar a cisão dos sistemas, explica Pejo. “Os sistemas serão estadualizados antes de serem licitados, ou seja, devolvidos aos estados, que poderão participar ativamente do lançamento dos editais de concessão, previstos para 2021. A concessão da Trensurb também está prevista para o ano que vem. Sem dúvida, será um processo mais fácil do que o da CBTU, por se tratar de um sistema só, com informações mais claras sobre sua situação atual”.

Segundo dados da secretaria especial do Programa de Parcerias de Investimentos, nos últimos quinze anos, a expansão da linha na CBTU e na Trensurb foi de apenas 5 km. Nas demais cidades que deixaram de ser operadas pela CBTU foi de 144 km no mesmo período – 31 km no Rio de Janeiro, 32 km em São Paulo, 33 km em Salvador e 48 km em Fortaleza. Para o presidente da ANPTrilhos, Joubert Flores, diante da falta de recursos públicos para arcar com o sistema, conceder à iniciativa privada pode ser uma boa solução.

“As operações da CBTU em Belo Horizonte, Recife, João Pessoa, Maceió e Natal deveriam ser responsabilidades dos estados ou dos municípios, conforme a constituição federal. No entanto, sempre houve receio de os estados não darem conta de arcar com o serviço. Nesses casos, o melhor é conceder, como o Rio de Janeiro fez”, elencando os pontos essenciais nos processos de privatização: segurança jurídica, previsão de custos técnicos, número de passageiros, obrigações e taxa de retorno financeiro.

“O desenho adequado a cada um desses sistemas é fundamental para que seja bom para a sociedade, que espera um serviço de qualidade; bom para o governo, ao gerar desoneração, e bom para o investidor”.

Contrato robusto

Se no Brasil, a operação da Linha 4-Amarela completa 10 anos em 2020 com êxito entre os usuários, na Inglaterra, uma tentativa de PPP para o metrô de Londres fracassou. Em 2010, o governo londrino rompeu antecipadamente um contrato de parceria com o setor privado, que havia sido firmado em 2003 para a expansão do sistema. A cidade pagou 310 milhões de libras para comprar de volta a parte da parceria privada, sob o argumento de que, sem a complexidade do contrato misto, teria mais agilidade e menos custos para dar continuidade ao projeto de melhorias e expansão do metrô.

Na opinião de Sérgio Avelleda, ex-presidente do Metrô de São Paulo e da CPTM entre 2002 e 2010 e que participou ativamente da estrutura jurídica da PPP da Linha 4-Amarela, os contratos de parceria público-privada requerem robustez e definições precisas em relação às obrigações de cada parte. “Não tenho nada contra investimento privado, mas é preciso ter em mente que PPP não é de graça, existe um custo para o estado, uma responsabilidade fiscal que o estado assume para os próximos 30 anos e que passará por diversas gestões”.

Os contratempos que aconteceram em 2019 como VLT Carioca, em que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, deixou de pagar à concessionária as prestações mensais previstas em contrato de PPP, é um bom exemplo de como a relação público-privada pode ser afetada ao longo das diferentes gestões. O contrato de PPP foi assinado pelo ex-prefeito da cidade, Eduardo Paes, anterior à gestão de Crivella.

Avelleda pontua que concessão da operação metroferroviária não é sinônimo de abstenção do governo sobre questões relativas ao transporte urbano. A operação pode ser privada, mas é do poder público a função de garantir a não competitividade dos modais, de exigir a manutenção da qualidade do serviço prestado e de montar um corpo técnico capacitado para trabalhar de forma competente nos órgãos de fiscalização e controle. “Para montar essa estrutura, é preciso investimento público”, comenta Avelleda, que atualmente trabalha nos EUA como diretor de Mobilidade Urbana no instituto de pesquisa World Resources Institute (WRI).

Pesquisas não divulgadas

A elaboração de pesquisas periódicas que informam o índice de satisfação dos usuários são cláusulas comuns em contratos de PPP e também de concessões metroferroviárias, mas em geral não são divulgadas pelas concessionárias.

“As pesquisas servem como termômetros da qualidade e podem ocasionar o reequilíbrio financeiro do contrato por parte do poder público, caso a concessionária não se mantenha no nível previamente estipulado. O capital privado não quer perder recursos, visa ao lucro, por isso
manter a operação saudável é algo fundamental e necessário”, ressalta Jurandir Fernandes,ex secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo durante dois mandatos (2003-2006 e 2011-2014) e atualmente presidente da UITP América Latina.

A Revista Ferroviária buscou ter acesso a essas pesquisas. ViaQuatro e a ViaMobilidade informaram que
por contrato existe a obrigatoriedade de as concessionárias fazerem pesquisas semestrais (qualitativa e quantitativa), mas os detalhes dos levantamentos só podem ser divulgados ao governo do estado. O VLT Carioca informou que realizou uma pesquisa de satisfação dos usuários por conta própria em 2017, já que a exigência contratual só passaria a valer quando o sistema tivesse plenamente implementado (com as três linhas, o que aconteceu no fim de 2019). O resultado da pesquisa em 2017 foi de uma avaliação geral de 92% para bom ou muito bom.

MetrôRio realiza por contrato duas pesquisas por ano. Segundo a companhia, 92% dos entrevistados recomendaram o sistema no último levantamento que fizeram, em setembro de 2019. SuperVia, por sua vez, afirmou que não há obrigatoriedade em contrato de concessão com o governo do estado para realização de pesquisas de satisfação. CCR Metrô Bahia informou que as pesquisas de satisfação dos usuários do metrô são obrigatoriedade do governo do estado, que faz duas por ano. VLT Baixada Santista não forneceu informações sobre esse tipo de pesquisa.

Sem querer entrar no mérito se é bom ou não privatizar, Fernandes afirma que é incomparável a eficiência que se vê na iniciativa privada em relação a problemas primários na operação. “Quebrou o vidro de um trem, por exemplo, o conserto certamente será mais rápido, afirma. O presidente da UITP América Latina também ressalta a habilidade da empresa privada em conseguir lucrar com receitas não tarifárias. Do lado público é tanta burocracia e limitações impostas pela legislação, que se acaba desistindo de fazer. Lembro que durante a minha gestão na secretaria, a ViaQuatro levou um mês para colocar telões meteorológicos nas estações, um período de tempo que nunca seria possível no âmbito público”.

Um das principais críticas de Fernandes é a não existência até hoje de uma agência reguladora voltada para a fiscalização das concessões metroferroviárias em São Paulo. “Já existe um bom volume de concessões atuais e futuras que justifica a criação de um órgão específico e autônomo de controle”, diz. A fiscalização das concessões metroferroviárias paulistas é feita por um pequeno corpo técnico cedido pela secretaria de Transportes Metropolitanos.

Para Sérgio Avelleda, a falta de uma agência reguladora em São Paulo preocupa: “Um órgão de controle independente técnica e politicamente é que fará o papel de proteção do contrato, mantendo equilibrado e bom para ambos os lados, público e privado”. Questionada sobre a criação da agência reguladora voltada para sistemas de transporte sobre trilhos em São Paulo, a secretaria de Transportes Metropolitanos não retornou.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*