Governantes e empreendedores prometem progresso, mas grupos preveem destruição de biodiversidade

Valor Econômico – Reynaldo Oliveira dos Santos, 74 anos, sai às 3h30 na sua canoa de oito metros. Vai com cinco companheiros pescar no mar de Ilhéus, como faz desde os 5 anos. Zé Neguinho, como é conhecido na colônia de pescadores, aprendeu o ofício com os avós, os tios e os pais. Com a pesca artesanal criou 25 filhos – sendo 24 mulheres e cinco delas pescadoras. “Cheguei da pescaria neste instante. Aqui dá pescada, dá camarão, mas já foi mais forte”, conta. As invasões dos manguezais, construções de condomínios e a degradação do ambiente “instalada em todo lugar”, como ele diz, cobram seu preço no maior pesqueiro do sul da Bahia. Agora há uma ameaça maior: a construção do Porto Sul, no distrito de Aritaguá. “Não é medo que tá causando. É um pânico grande na gente.”

Uma mina de ferro, um porto e uma ferrovia estão a ponto de mudar para sempre a terra de vegetação exuberante e o mar rico em peixes do sul da Bahia. A última peça deste complexo logístico será leiloada em 8 de abril – um trecho de 500 quilômetros da ferrovia conhecida por Fiol, que pretende integrar o oeste produtor de grãos ao leste, e desembocar em Ilhéus.

Governantes e empreendedores prometem empregos e progresso onde ambientalistas, pesquisadores, donos de fazendas e empresários vislumbram um rastro de destruição de biodiversidade, da vida de comunidades tradicionais e da vocação local. Um estudo feito em 1993 por pesquisadores do Jardim Botânico de Nova York identificou na região um “hotspot” de biodiversidade da Mata Atlântica com a maior diversidade de árvores do mundo. São 450 espécies diferentes em um só hectare de floresta.

A mina de ferro da Bahia Mineração (Bamin), o trecho da ferrovia Fiol e o Porto Sul produzem controvérsia e resistência. “Estamos falando de um projeto que é um péssimo negócio. Faz estragos na economia que existe nesta região [da costa do cacau] e na área onde está o projeto de minério de ferro”, diz Rui Barbosa da Rocha, fundador do Instituto Floresta Viva, no filme “Uma breve história do progresso”, dirigido por Markus Mauthe e produzido por André D’Elia.

No sertão da Bahia, na região onde está a mina, há muitos agricultores familiares que produzem alimentos para quem vive por ali. “Tenho milho na roça, tem mandioca, tem mamão, tem o suficiente aqui no meu sertão”, fala no documentário Carlito de Carvalho, que vive desde sempre em Taquaril dos Fialhos, comunidade rural de Licínio de Almeida. “Muita gente fala: ‘Vixe, a comunidade Taquaril é pobre’. Ô meu Deus, é uma comunidade muito rica. A hora que entra dentro do Taquaril, limpa as vistas de qualquer viajante que chega, porque é bonito demais.”

A Pedra de Ferro, da Bamin, é um projeto de extração de minério de ferro e manganês por 30 anos nos municípios baianos de Caetité e Pindaí. “Trata-se de empreendimento de grande porte, com alto potencial poluidor”, diz em nota o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), que concedeu as licenças da mina. A licença de instalação, de 2019, diz que a área diretamente afetada é de 4.245 hectares. A barragem de rejeitos é de 180 milhões de m3.

“É muito maior que a que rompeu em Brumadinho e coloca em risco uma cidade inteira e o rio São Francisco”, diz o dentista Evilázio Bonfim, residente de Guanambi, a 40 quilômetros de Caetité e da mina. Ele explica que a barragem de rejeitos está acima do reservatório de água da cidade, de 50 milhões de m3. “A cidade não foi ouvida nesse projeto descabido”, diz Bonfim. Em julho de 2019, 8 mil pessoas foram às ruas de Guanambi protestar contra a barragem e exigindo audiência pública.

Em Caetité, os conflitos da mineração com as comunidades têm por foco a questão fundiária. A Bahia tem legislação que institui os fundos e fechos de pasto, áreas usadas por comunidades para soltar bois e bodes colher ervas medicinais ou garimpar ametistas, e que reivindicam a posse coletiva de terras adquiridas pela Bamin. “São mais de 15 comunidades reivindicando estas terras”, diz José Carvalho, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A barragem irá se sobrepor a 26 nascentes que abastecem 3 mil famílias. “Comerciantes defendem o projeto porque acreditam que trará desenvolvimento e emprego, mas sabemos que isso só se dá na construção, que o emprego é temporário. As comunidades são contra”, diz ele.

Nota do Inema encaminhada à reportagem lista as licenças concedidas ao projeto Pedra de Ferro.

De Caetité a Ilhéus serão 537 quilômetros de ferrovia. O engenheiro florestal Carlos Alberto Mesquita se debruçou em documentos para entender a viabilidade da ferrovia. “Fica evidente que só será viável se, além da carga de minério, tiver transporte de grãos”, diz. “Ocorre que os três grandes projetos ferroviários hoje em debate, a Fiol, a Fico e a Ferrogrão, competem pela mesma carga.”

Mesquita integra o Movimento Sul da Bahia Viva formado por cidadãos preocupados com os riscos sociais e econômicos que os projetos podem trazer. “Claro que o melhor modal de carga é a ferrovia, mas é preciso observar o que tiver o menor impacto social”, diz. “Se o empreendimento não vier, será a melhor oportunidade que a região terá de se desenvolver pelo caminho correto, e não por algo de altíssimo risco, que pode não gerar desenvolvimento algum e acumular problemas na região.”

Documentos de novembro de 2020 da Agência Nacional de Transportes Terrestres com registros do Ibama indicam mais de 450 ocorrências de impactos ambientais em trechos com supressão irregular de vegetação e processos de erosão na terraplanagem da ferrovia – 62% de “alta gravidade”. O passivo ambiental, que será assumido por quem vencer o leilão, é estimado em R$ 500 milhões.

O traçado da ferrovia corta floresta, divide fazendas e assentamentos, separa povoados ao meio. Terá impacto na biodiversidade e no seu entorno, como na linda Lagoa Encantada onde mais de mil famílias sobrevivem da pesca. “É um projeto errado”, argumenta Rui Rocha. “Aqui é um lugar espetacular. Tem maciços de Mata Atlântica e água abundante, comunidades tradicionais de pescadores e de pequenos produtores. É o cenário da economia do cacau retratado na literatura de Jorge Amado”, lembra. São mais de 400 mil hectares de cacau plantados no meio da Mata Atlântica.

Ana Paranhos Monteiro é da quarta geração de tradicional família da região. Herdou a fazenda do bisavô, viu a avó enfrentar sem sucesso a “vassoura de bruxa” (praga que dizimou a cultura décadas atrás) e transformou o legado com produção orgânica na Fazenda Cruzeiro do Sul e biodinâmica na Nova Juruá. Obras da Fiol já cortam a propriedade que hoje produz cacau de alta qualidade no sistema agroflorestal conhecido por cabruca. Tudo o que sai da fazenda – cacau, chocolate, açaí, banana, limão, jaca – é certificado. “Imagine o impacto se o minério não estiver envelopado”, teme Ana. Ela diz que o terreno é acidentado e pedregoso. “Como farão para construir? Vão explodir bombas?”

O Ibama, que licenciou a ferrovia, não respondeu aos questionamentos da reportagem.

A Valec, empresa que detém a concessão da Fiol, disse em nota que, “até o momento, os números do meio ambiente refletem o atendimento às condicionantes do licenciamento ambiental”. Informou 144 sítios arqueológicos identificados, dos quais 120 resgatados, e disse que se garantiu “resgate e soltura” de cerca de 20 mil “espécimes de fauna no habitat”. Transplantaram 8.069 cactos, bromélias e orquídeas de 78 espécies.

“É uma região que deveria estar focada no turismo de baixa intensidade e de qualidade”, avalia Renato Cunha, coordenador do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá). Ele elenca os diversos impactos dos três projetos. A mina, além dos rejeitos e da poluição do ar, pode causar danos à qualidade da água e à produção de alimentos. A ferrovia fragmenta o território. E o porto afeta os remanescentes de Mata Atlântica e a pesca artesanal. “Vai na contramão do que estava previsto para a região”, lembra.

“Este projeto não vai melhorar a vida da população de Caetité nem de Ilhéus. A mina é uma riqueza finita”, diz Maria do Socorro Mendonça, liderança e fundadora do Instituto Nossa Ilhéus. Ela lembra a opção de escoar o minério usando a Ferrovia Centro-Atlântica, que passa a 70 km de Caetité e desemboca no porto de Aratu. “Por que não modernizam a ferrovia que já existe? O custo é muito menor do que destruir uma região”, alerta.

Com ela concorda Mario Mantovani, há 30 anos na SOS Mata Atlântica. “O projeto é equivocado. O investidor hoje não é o mesmo de dez anos atrás”, diz, referindo-se à primeira versão do porto. “A vocação econômica da região é turismo, cacau de qualidade, pesca”. São 500 mil turistas por ano na bela costa local. “Não há justificativa ética, moral ou econômica frente à destruição da maior área de biodiversidade do planeta.”

A controvérsia em relação ao Porto Sul tem quase 15 anos, quando o projeto teve início. A resistência foi forte, os ministérios públicos federal e estadual entraram com ações sucessivas e o preço do minério de ferro caiu – tudo isso fez com que o empreendimento ficasse em banho-maria. Ressurgiu há pouco, deslocado 12 km da primeira proposta. O porto ficará em alto-mar, conectado por um píer de três quilômetros. A obra tem tal complexidade que sua viabilidade ambiental foi licenciada com 38 condicionantes determinadas pelo Ibama. Os ambientalistas dizem que não foram cumpridas. O Ibama não respondeu.

Boa parte da população de Ilhéus acredita que o porto trará empregos e desenvolvimento. Mas a costa do cacau, muito preservada, será fortemente afetada. Os danos à vida dos pescadores são profundos. “Eu só sei pescar. A empresa tem feito cursos com os pescadores para fazer doce de banana, artesanato. Queremos condições de sustentar a família de forma digna”, reclama Zé Neguinho.

Em 2018 foi criado um grupo de trabalho com representantes dos ministérios públicos estadual e federal, a Procuradoria-Geral do Estado, a Secretaria do Meio Ambiente e o Inema, a Casa Civil e a Bamin. A intenção era discutir ações preventivas e soluções reparatórias aos impactos socioambientais do Porto Sul, conta Aline Valeria Archangelo, promotora regional de meio ambiente de Ilhéus. “Reconhecemos que o Brasil tem poucos portos, que precisa baixar o custo-Brasil, mas não devia ser em uma região raríssima como esta.”

Em 2019 foi assinado um Termo de Compromisso Socioambiental (TCAS), esclarece nota enviada pelo Inema. Os ministérios públicos desistiriam das ações judiciais e a Bamin colocaria R$ 45 milhões, em seis anos, para estudos e investimentos em monitoramento, fiscalização, recuperação de ecossistemas, planejamento estratégico e nas unidades de conservação. “São mais que estudos, são ferramentas”, diz Manoel Serrão, superintendente de programas do Funbio, organização que vai gerenciar os programas do TCAS. “Normalmente estes ajustes vêm depois. Estaremos preparados antes”, diz.

“Uma mina com ciclo de vida de 20 a 30 anos não justifica alteração tão profunda do território”, diz Miguel Calmon, consultor sênior do WRI Brasil. “O conjunto da ópera não faz sentido e não temos clareza dos impactos”. Ele registra a especulação de terras que empreendimentos assim produzem: “Só na expectativa de que a terra irá valorizar, o pessoal começa a converter a floresta.” O projeto, acredita, “é dado como certo”. Calmon não se diz “contra a iniciativa em si”, mas argumenta que “qualquer empreendimento desta envergadura tem obrigação de desenvolver o território de modo sustentável”.

Amarildo Novais Arcanjo, o Báu, é líder dos pescadores da Barra Norte. Pesca todos os dias em alto-mar. “Rapaz, somos crescidos e criados nisso. Com o porto, como vamos fazer? Tenho até a sexta série. Hoje até pra correr atrás do caminhão do lixo tem que ter ensino fundamental.” São milhares de pescadores na região e os recursos pesqueiros já andam escassos. Reivindicam compensação vitalícia. “A gente que é pequeno acaba sempre no prejuízo”, diz Báu.

Fonte: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/16/sul-da-bahia-teme-que-ferrovia-traga-destruicao.ghtml

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