O Globo – A necessidade de se deslocar todos os dias ao trabalho, em meio ao agravamento da pandemia de Covid-19, levou Luiza Marques, de 27 anos, a tomar uma medida drástica. No mês passado, a vendedora arrumou as malas e deixou a casa da mãe, no bairro de Santa Cruz, no Rio, para morar no Gardênia Azul, a 20 minutos da Barra da Tijuca, onde trabalha em uma loja de artigos esportivos. O estopim para a mudança de endereço foi um assédio que sofreu no ano passado em um veículo lotado do sistema de ônibus de trânsito rápido, o BRT, usado para atravessar a Zona Oeste da cidade.
— O ônibus estava lotado como sempre. Tentei sair de onde estava e não conseguia me mexer. Depois dessa situação, não consegui mais pegar o BRT. Também há o risco da pandemia; a maioria dos passageiros não usa máscara. A gente se submete a uma situação deprimente — conta Luiza.
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Registros de aglomerações como as enfrentadas por Luiza não são novidade no país, mas se tornam ainda mais graves pelo alto risco de contágio da Covid-19. Passado mais de um ano desde o início da pandemia, a estratégia do poder público e das empresas do setor tem se mantido: diversas cidades seguem com a frota de ônibus reduzida para balancear a diminuição da demanda. Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam, porém, que as medidas contribuem para a alta lotação em veículos de transporte público e salientam que a crise sanitária deixou claro que o sistema de financiamento precisa ser repensado.
No Rio, a frota de ônibus e BRT foi reduzida em 21%, na comparação com fevereiro de 2020. A queda é menor do que a registrada na demanda de passageiros, mas isso não significou o fim das aglomerações. Um relatório da Casa Fluminense, movimento voltado para a elaboração de políticas públicas, aponta que mesmo a retomada aos padrões observados no início de 2020 não seria suficiente para resolver o problema. Isso porque, em março, apenas 55% da frota prevista em contrato estava em circulação na cidade. Um ano depois, esse percentual caiu para 40%. O contrato de concessão, alerta o relatório, prevê circulação mínima de 80% da frota.
Nos trens da SuperVia, 88 composições com 168 carros faziam o transporte de passageiros em janeiro do ano passado em diversos municípios da Região Metropolitana. Atualmente, são 71 composições, com 134 carros. A concessionária afirma que a demanda caiu 50%.
Também houve queda na frota de ônibus, mas menos acentuada, em cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba. Na capital paulista, em janeiro de 2020, 3,3 milhões de passageiros utilizaram diariamente os 12,8 mil ônibus municipais. Na terça-feira passada, a circulação foi de 1,8 milhão em uma frota com 11,3 mil veículos.
Em Curitiba, mesmo a queda acentuada da demanda não impediu as aglomerações. No último dia 16, o Ministério Público do Paraná expediu uma recomendação administrativa à prefeitura, após uma inspeção do Tribunal de Contas do Estado identificar o descumprimento do limite de passageiros nos coletivos em horários de pico.
O professor de Epidemiologia da Uerj Guilherme Werneck avalia que o transporte público tem recebido pouca atenção das autoridades, enquanto ambientes como menos possibilidade de transmissão, como espaços ao ar livre, são mais comuns em decretos e ações de fiscalização. O pesquisador ressalta que, além de reduzir o número de passageiros, é preciso garantir boa ventilação nos veículos e o uso de máscaras como a PFF2. O ideal, afirma, é que ônibus e trens circulem com 50% de sua capacidade.
— Em muitos países, houve auxílio às empresas para que pudessem manter a frota completa e escalonamento de horários. Mas isso não foi feito no Brasil, onde as condições de transporte são piores e se leva mais tempo nesse deslocamento — diz Werneck.
No ano passado, o Congresso aprovou um projeto que previa o repasse de R$ 4 bilhões da União aos municípios com mais de 200 mil habitantes e aos estados e ao Distrito Federal, para garantir o serviço na pandemia. O texto, porém, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mais de um ano após o início da pandemia, o governo federal começou a elaborar uma diretriz para estabelecer protocolos para o transporte público. O anúncio foi feito pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, há duas semanas. Uma das estratégias cogitadas é a testagem direcionada ao setor.
Além das aglomerações, a redução da frota provocou outros efeitos colaterais. O tempo médio de espera por transporte público nos diferentes modais aumentou em 2020 em grandes cidades brasileiras monitoradas pelo Moovit, empresa especializada em soluções de mobilidade. A média nacional subiu de 19 para 23 minutos. Em Recife, Salvador e Belo Horizonte, esse tempo cresceu em seis minutos na comparação com 2019.
Na cidade de São Paulo, a enfermeira Maria Aparecida Miyagawa, de 53 anos, moradora da Zona Leste, passou a gastar uma média de R$ 300 por mês com aplicativos de transporte compartilhado durante a pandemia. Tudo para evitar o maior tempo de espera e aglomerações em ônibus e trens que ela diz ter experimentado nos fins de semana e feriados.
— Uber tem sido uma constância na minha vida. Não passa ônibus de jeito nenhum. E quando passa, vem lotado. Não adianta fechar o comércio e deixar o transporte público do jeito que está — desabafa Maria.
Uma pesquisa da professora USP Mariana Giannotti apontou que, no ano passado, mudanças no transporte em grandes cidades aumentaram o risco de contágio em grupos mais vulneráveis, como negros e moradores da periferia. No Rio e em São Paulo, segundo o estudo, a circulação nas estações de metrô dos bairros mais afastados do centro aumentou em até 80% com a queda na oferta de transporte público.
— Pessoas de baixa renda historicamente moram em locais distantes do trabalho. A redução da frota nessas cidades não considerou essas diferenças, o que sobrecarregou as linhas na periferia — diz Mariana Giannotti.
Dados do Google indicam que a circulação de pessoas em plataformas e estações de transporte público ainda é menor que a do período anterior à pandemia, mas está em patamares mais altos na comparação com o ano passado, num momento em que os casos de Covid-19 batem recorde. A maior queda, de 69% em relação à média dos três primeiros meses de 2020, ocorreu em 10 de abril do ano passado. Entre os dias 10 e 18 de abril de 2021, a redução variou entre 21% e 35%.
Especialistas avaliam que o principal entrave está no modelo de financiamento, bancado pelos próprios usuários. Coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Insper e ex-secretário de Transportes de São Paulo, Sergio Avelleda sugere a cobrança de pedágio urbano, estacionamentos públicos e aumento de impostos para quem usa carro, a fim de reverter esses recursos para investimentos em metrô e ônibus:
— O uso do transporte público gera uma série de externalidades positivas: diminui poluição, acidentes, congestionamentos. Quem decide ir de carro ocupa muito mais espaço na cidade, causa mais acidentes, mais poluição. A gente precisa que um financie o outro.
O professor Romulo Orrico, da Coppe/UFRJ, concorda com o diagnóstico e lembra que em muitas cidades europeias esse custo é compartilhado com vários setores empresariais e com o Estado:
— A conta de fazer esse sistema inteiro funcionar fica só a cargo do usuário. Acontece que os benefícios da existência desse sistema não ficam só com ele. São vários os beneficiários, mas ninguém divide a conta.
O coordenador da Casa Fluminense, Vitor Mihessen, também defende mudança no financiamento:
— É preciso discutir o papel do Estado, à medida que o transporte é um direito. Precisa ser criada, aos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja a importância a gente vê agora, uma referência para os transportes, um sistema que preveja conselhos e planejamentos, além de fundos para financiar o transporte que sejam alimentados com recursos diversos, sobretudo a taxação de transporte individual motorizado.
O recrudescimento da segunda onda da pandemia no Brasil e o avanço, ainda que lento, da vacinação também colocou pressão sobre o poder público para que categorias relacionadas ao transporte público fossem inclusas nos grupos prioritários de imunização. Uma paralisação de motoristas de ônibus em São Paulo chegou a ser marcada para 20 de abril, mas a categoria suspendeu a greve na noite anterior após garantir a vacinação dos trabalhadores pelo governo estadual. Já a cidade do Rio começou a vacinar motoristas e cobradores de ônibus na última semana.
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