Fim do socorro a concessionária de serviço público

Valor Econômico – O Projeto de Lei nº 7.063/2017, que deve se tornar o novo marco legal das concessões e parcerias público-privadas no Brasil e que está pronto para ir ao plenário da Câmara dos Deputados, prevê – em um dos seus artigos – que as recuperações judicial e extrajudicial não são aplicáveis às concessionárias de serviços públicos (como são, por exemplo, as concessionárias de rodovias), exceto após o término dos respectivos contratos de concessão.

Com base nesse projeto, as concessionárias que estiverem com dificuldades financeiras, em vez de irem ao Judiciário, deverão apresentar um plano de recuperação direcionado à própria administração pública que as contratou. Se existente agência reguladora no setor em que a concessionária endividada atue, àquela caberá a aprovação do plano de recuperação apresentado.

Trata-se de um retrocesso lamentável embasado, em parte, em dois dogmas que continuam em nossa cultura: o primeiro é o da indisponibilidade do interesse público; o segundo, o do estigma da falência. Quanto ao primeiro, o Refis é um dos muitos exemplos de disposição do interesse público, com o objetivo de, entre outros, aumentar a arrecadação, demonstrando que esse dogma permite exceções. Quanto ao segundo, ao transferir a solução de uma insolvência para o setor público, estaremos simplesmente aumentando a nossa indústria de empresas zumbis, pois as soluções que se apresentam para sanar uma insolvência (como, por exemplo, o haircut) não dialogam com a caixa de ferramentas dos agentes públicos. Não bastasse isso, colocar a solução de uma situação de insolvência nas mãos do principal credor é claramente inconstitucional.

Exemplos de bem-sucedidas recuperações judiciais não faltam: os casos da Celpa, do Grupo Rede e da RdT – e mesmo da Oi – demonstraram ser possível, inclusive, dialogar bem com as agências reguladoras no que concerne a sua função precípua, que é a de preservar os serviços públicos. Se a insolvência inviabilizar a boa prestação dos serviços públicos não faltam remédios para o ente regulador, tais como a intervenção e a caducidade. Eliminar a recuperação judicial do rol de remédios disponíveis nada mais é do que um exemplo da nossa tendência ao autoflagelo, o masoquismo cultural que tem nos condenado à estagnação.

As concessionárias de serviços públicos são justamente as que mais precisam ter à disposição a recuperação judicial

O citado projeto representa, então, a incompreensão sobre os papéis institucionais do Poder Judiciário, de um lado, e das agências reguladoras, de outro. Em uma primeira perspectiva, o Poder Judiciário adquiriu notável especialização para enfrentar as dificuldades atinentes à reestruturação empresarial. Para isso, houve a criação de varas especializadas em diversos tribunais, visando a que as recuperações judiciais sejam conduzidas por magistrados que tenham o conhecimento técnico necessário. A capacidade do sistema de recuperação judicial de garantir que ocorra a composição dos interesses de todas as partes, com a finalidade de sanar o endividamento da empresa em crise, é vital para impedir danos em cadeia.

Em uma segunda perspectiva, as agências reguladoras foram criadas, a partir da década de 90, para regular importantes setores econômicos, como são exemplos os setores de petróleo, energia, telecomunicações etc. Definitivamente, não foi para aprovação de plano de recuperação que elas foram concebidas: falta preparação técnica para isso, mas – sobretudo – desrespeita-se a relevante missão institucional para que foram criadas.

A função primordial da recuperação é justamente preservar a atividade empresarial, o que é especialmente relevante em se tratando de concessionárias de serviços públicos: elas realizam investimentos não recuperáveis (sunk costs), cujo retorno não ocorre imediatamente, mas no curso de décadas. Além do mais, elas não possuem autonomia para definição do seu preço, pois se vinculam à tarifa estabelecida pelo Estado, bem como se submetem a diversas interferências dele. Por isso, os projetos de infraestrutura são, por algum tempo, deficitários.

Diante de condição tão delicada, pode-se afirmar que as concessionárias de serviços públicos são as empresas que, por excelência, precisam desses procedimentos, diante das específicas condições de suas atividades empresariais. Já não é estranho, no mercado de infraestrutura no Brasil, ouvir-se falar a respeito da devolução de concessões, à moda do que se deu, por exemplo, na concessão de Viracopos, outro exemplo de um diálogo importante entre a agência reguladora e a empresa insolvente, aliás, gestora reconhecida do melhor aeroporto do Brasil.

Em síntese, caso haja a aprovação do projeto, não haverá mais a quem as concessionárias de serviços públicos possam se socorrer. Logo elas, que – pelas específicas condições dos seus negócios – são justamente as que mais precisam ter à disposição a recuperação judicial, pois os seus contratos são longos, e as intempéries são muitas.

Por Thomas Felsberg e Guilherme Dourado

Thomas Felsberg e Guilherme Dourado são, respectivamente, sócio fundador e advogado em Direito Público do Felsberg Advogados.

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/fim-do-socorro-a-concessionaria-de-servico-publico.ghtml

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