A viagem não começa na estação

Sérgio Avelleda
é sócio-fundador da Urucuia: Mobilidade Urbana e coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

Os sistemas de transporte público, mesmo antes da pandemia, assistem a uma diminuição do número de passageiros. A diminuição vinha ocorrendo lenta e gradualmente até o fatídico mês de março de 2020, quando perdemos até 75% da demanda, em razão das necessárias medidas de distanciamento social. Agora, paulatinamente, graças à ciência, que desenvolveu a vacina em tempo recorde, os passageiros estão voltando. Mas ainda estamos distantes dos números pré-pandemia.

Antes um desafio, agora uma questão de sobrevivência, recuperar e trazer novos passageiros é uma tarefa árdua. Costuma-se dizer, entre os transportistas, que passageiro perdido é passageiro sem volta. Não penso assim. Várias são as ferramentas que podemos utilizar para induzir o uso do transporte público e, também, seduzir as pessoas para que adotem deslocamentos coletivos em lugar dos modos individuais. Priorização do espaço das vias aos ônibus e vans, subsídio para redução das tarifas, tarifas integradas, cobrança pelo uso das vias como estacionamento privado e restrição à circulação dos automóveis talvez sejam as mais clássicas.

Deveríamos, antes de mais nada, incorporar um lema muito utilizado na pandemia: “toda vida importa”. Penso que seria bom seguir o mesmo lema na gestão pública ou privada dos sistemas de transporte: “todo usuário/cliente importa”.

O tempo do usuário cativo, sem opção, que pagava passagem para viajar de trem e metrô, porque outra opção não lhe restava, está acabando.

A proposta do “Estação Mobilidade” esta edição é uma reflexão sobre um elemento que não é priorizado nas políticas do poder público e tampouco dos operadores privados: identificar o início da jornada de viagem do cliente e buscar proporcionar a ele uma experiência que o induza a escolher os nossos metrôs e sistemas de trem.

Para você, caríssimo leitor, em qual momento o nosso pacato cidadão começa a ser usuário ou cliente de um sistema de transporte sobre trilhos? A resposta tradicional poderia ser: no momento em que ele ingressa na estação ou no terminal. Uma visão mais holística e preocupada em ampliar o acesso aos nossos sistemas deveria ser: quando ele calça os sapatos e decide como fazer a respectiva viagem.

Se pensássemos assim, o mesmo afinco que dedicamos à limpeza e manutenção dos nossos trens e estações adotaríamos para que o caminho entre a casa do nosso potencial cliente e o acesso às nossas estações fosse convidativo, confortável, seguro e integrado.

Uma rede de calçadas com os atributos descritos acima e que conduza virtualmente um usuário para um equipamento de metrô pode convencê-lo a trocar o carro pelo trem. Calçadas limpas, desobstruídas, sinalizadas (em tantos minutos, você estará na Estação Trianon-Masp, por exemplo), seguras e iluminadas. A circulação de automóveis, embora conte com o apoio dos aplicativos de GPS, é sempre muito bem sinalizada, sobre direções e distâncias. Qual cidade brasileira oferece aos pedestres sinalização similar?

Os sistemas de metrô deveriam cobrar das prefeituras e proprietários, ou até executar por conta própria, as obras e os investimentos para que as calçadas sejam fios condutores dos usuários para dentro das estações e, ao fim da viagem, de dentro delas para os principais destinos e fluxos.

Quando fui secretário de Mobilidade em São Paulo, tivemos a oportunidade de implantar uma rua completa, a Rua Joel Carlos Borges, ao lado da estação Berrini da CPTM. Ampliamos as calçadas, projetamos um mobiliário urbano convidativo para as pessoas andarem e permanecerem na rua. Projetos como esse deveriam ser multiplicados ao redor das estações de trem e metrô.

Quantas estações de metrô têm bicicletários? Qual sistema de metrô aceita integrar (fisicamente e na tarifa) os sistemas de compartilhamento de bicicleta? Já pensou: uma viagem de bike e metrô, conjugada, oferecendo descontos nos dois modos?

Quantos estacionamentos conveniados com as estações de metrô nós temos no Brasil, oferecendo descontos para que o usuário estacione o carro e embarque nos trens, complementando e integrando a viagem, diminuindo a distância percorrida com seu automóvel?

Quais metrôs compartilham dados de posicionamento real de trens para que aplicativos ofereçam aos potenciais usuários uma capacidade de planejamento de viagem em que sua chegada na estação coincida exatamente com a partida do seu trem?

Nunca vi publicidade do metrô no Waze, por exemplo, dizendo ao motorista: “Se você estivesse no metrô, já teria chegado faz tempo…” Mas já vi publicidade de motocicleta em sistemas de metrô, oferecendo liberdade em troca da lotação.

O nosso usuário está em casa, neste momento. Pensando em como ir para o trabalho amanhã, repetindo, em geral, o seu comportamento habitual. Não vamos mudar esse hábito, trazendo- o para os sistemas coletivos, se ficarmos esperando-o na estação. É preciso buscar a alma e o coração desse potencial usuário onde ele está, oferecendo caminhos seguros, convidativos e favorecendo a integração multimodal. Usuário não vai cair do céu.

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