Valor Econômico – A decisão da Advocacia-Geral da União (AGU) de reabrir a discussão sobre os “requisitos formais” para uso de precatórios por concessionárias de infraestrutura no pagamento de outorgas segue gerando desconforto entre dirigentes das agências reguladoras. Em ofício interno, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) indicou que a suspensão dos atos, provocada por mudança de orientação da AGU, “instaura um quadro de insegurança normativa”.
A alternativa de pagamento de outorga foi criada pela Emenda Constitucional 113, de 2021. A ANTT foi uma das precursoras entre as agências reguladoras com a iniciativa de regulamentar os procedimentos para fazer uso dos precatórios. Isso ocorreu principalmente pela demanda do grupo Rumo Logística, que chegou a ingressar na Justiça para fazer valer a nova regra com a outorga de renovação antecipada do contrato de concessão ferroviária da Malha Paulista.
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O ofício da ANTT, obtido pelo Valor, partiu da Coordenação de Instrução Processual do órgão, sendo endereçado à Superintendência de Infraestrutura Rodoviária. Ou seja, outra área de transportes fiscalizada e regulada pelo órgão que é afetada pela iniciativa da AGU.
Questionada sobre o teor do documento, a agência justificou que “por não haver, no momento, regulamentação geral que normatize o tema relacionado aos procedimentos internos a serem desempenhados no âmbito das autarquias, o quadro de insegurança normativa citado se traduz no possível conflito que a edição de resolução interna da ANTT poderia apresentar com futuro ato normativo” da AGU.
A agência, que cuida dos contratos de ferrovias e rodovias federais, buscou minimizar o tom do documento, alegando que “trata-se de comunicação interna” direcionada às “superintendências e demais órgãos internos”. O processo administrativo instaurado, informou, foi remetido à análise da Procuradoria Federal junto à ANTT.
A interrupção da tramitação dos processos nas agências ocorreu em meados de março, quando a AGU revogou portaria publicada em dezembro do ano passado pelo governo anterior. A norma antiga padronizava os procedimentos na administração pública para uso dos valores precatórios, que elevou expectativa para as concessionárias dos serviços de infraestrutura.
Na decisão de março, o órgão de representação jurídica da União estipulou o prazo de 120 dias para discutir o assunto em grupo de trabalho ministerial. O tempo só começará a ser contado a partir da data da primeira reunião, com possibilidade de prorrogação.
A rigor, o uso dos recursos atrelados a decisões judiciais desfavoráveis à União não está proibido. Até porque a Constituição, agora, faculta aos credores essa nova forma de uso dos precatórios e estabelece o critério “auto aplicabilidade” desse mecanismo à União.
Conforme demonstrado pelo documento da ANTT, porém, as incertezas lançadas sobre a forma correta de como proceder com uso dos precatórios colocaram os processos internos nas agências reguladoras em compasso de espera.
Outras autarquias, além da ANTT, têm recebido demandas de concessionárias para utilizar parte do estoque de precatórios para honrar o pagamento de outorgas. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) assinou contrato de concessão do aeroporto de Congonhas (SP) e mais dez terminais em Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Pará com o grupo espanhol Aena. O empreendedor manifestou o interesse de usar precatórios no pagamento da outorga.
Os ministros da área de infraestrutura manifestaram contrariedade sobre o uso indiscriminado dos precatórios para pagar a União. O titular da pasta de Portos e Aeroportos, Márcio França, já comentou sobre o caso de Congonhas. Ele considera que a alternativa de pagamento fere as condições isonômicas de competição do leilão.
Na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), também ligada ao Ministério de Portos e Aeroportos, o diretor-geral Eduardo Nery defendeu, no último dia 28, que haja uma definição clara sobre o uso dos precatórios. A preocupação está em dar a sinalização correta aos participantes dos futuros leilões de arrendamento de terminais.
O ministro dos Transportes, Renan Filho, em recente entrevista, afirmou que a alternativa de uso dos precatórios no setor pode levar o governo federal a frustrar a expectativa de arrecadação em momento crucial de fortalecimento da política fiscal. Ele, no entanto, admite que o uso de crédito de ações judiciais está previsto na Constituição e ajuda empresas do setor.
O Valor apurou que até as participantes do leilão da quinta geração de telefonia celular (5G) já foram à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) pedir para quitar outorgas com precatórios. Este é o caso da operadora Winity, do Pátria Investimentos, que se comprometeu a depositar no caixa do Tesouro R$ 1,4 bilhão pela licença de serviços na faixa de 700 megahertz (Mhz).
A intenção da AGU, por sua vez, é tornar o mecanismo mais rígido. No entendimento do órgão, a portaria anterior causava insegurança jurídica para o procedimento. O órgão já criou um grupo de trabalho e fez convites ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que também vai convocar o Conselho da Justiça Federal (CJF) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT).
O órgão também possibilitou que associações e classes organizadas externas à administração pública, que entendam da matéria, participem das discussões. A AGU estima que, em 120 dias, uma nova portaria seja publicada, com novas regras e que ofereça mais segurança jurídica.
Em seu site, a AGU esclarece que, apesar da revogação, a decisão sobre o recebimento dos precatórios para essa finalidade caberá a cada órgão ou entidade federal com base na previsão constitucional existente. “O órgão ou entidade deverá, ainda, avaliar se as condições da licitação permitiriam o pagamento sem infringência da igualdade do certame. A recomendação da AGU, no entanto, é de que aguardem a regulamentação a ser realizada por meio da nova portaria, fato que garantirá maior segurança jurídica para a decisão do gestor”, pontuou o órgão.
Para Maelly Souza, da área de infraestrutura do escritório MAMG Advogados, caso a nova portaria não seja publicada em breve, “poderá causar impacto no investimento privado em infraestrutura, que há quase uma década supera o volume de investimento público”.
“A aceitação das moedas de privatização e a oferta de crédito aos compradores de empresas estatais representam incentivos, com redução de custos para que a iniciativa privada adquira empresas. O ganho fiscal estaria em evitar a liquidação de estatais ineficientes”, afirmou.
Sócio do Toledo Marchetti Advogados, João Paulo Pessoa considera que a EC 113/21 foi “bastante clara” ao garantir o uso dos precatórios, pressupondo que “eventual regulamentação será aquela minimamente necessária” para o uso dos créditos. “Não se pode admitir que o dever da União de regulamentar o procedimento de encontro de contas se torne um obstáculo para efetiva utilização do precatório”, disse o advogado.
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