Sérgio Avelleda
é sócio-fundador da Urucuia: Mobilidade Urbana e coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
Faz poucas semanas, o Governo do Estado de São Paulo lançou o edital de concorrência pública para a contratação do serviço de público de transporte de passageiros sobre trilhos, ligando São Paulo a Campinas, com paradas intermediárias em Jundiaí e outras cidades.
É a primeira iniciativa concreta de retomada dos trens de passageiros de médias distâncias no Brasil. Conservamos apenas duas linhas de trens de passageiros, com operação comercial, que não seja uma conexão metropolitana: a Linha Vitória-Minas e a Linha Carajás, ambas providas pela Vale.
É sempre triste essa constatação. Já fomos um país ferroviário. Segundo o nosso amigo e expert no tema, Ayrton Camargo e Silva, “Em 1959 o sistema ferroviário nacional possuía 38 ferrovias, 38.160 km de extensão em tráfego, com mais de 3.700 estações e paradas, uma frota de mais de 4.300 carros de passageiros de longo percurso, tendo transportado nesse ano cerca de 100 milhões de passageiros, excluídos os passageiros transportados pelos trens de subúrbio.” Sempre penso na dificuldade que tenho de explicar a meus filhos que já tivemos 3700 estações e paradas de trens e hoje temos quase nada. Como pudemos fazer isso com o patrimônio do país? De fato, foi um crime.
Portanto, o anúncio da licitação de uma linha intermunicipal de passageiros deve ser recebido com alegria e entusiasmo e torcemos para que grupos econômicos se interessem pelo projeto e o coloquem em pé. Torcemos além: que o sucesso desse primeiro trem embale outros projetos que se conectem e devolvam ao Brasil a sua pujança ferroviária.
E por quê? Ora, porque a ferrovia é um modo de transporte rápido, especialmente em distâncias inferiores a 1000km, é confiável, é seguro (são mais de 3600 mortos por ano, só nas estradas federais), é sustentável e tem potencial Transformador do uso do solo e do planejamento urbano.
Em distâncias inferiores a 1000km a tecnologia ferroviária atual, se bem desenhadas as linhas, pode oferecer viagens em torno de 5 a 6 horas de duração. O avião faz essa distância em pouco mais de uma hora, mas é preciso somar a hora antecedente que temos chegar ao aeroporto, a meia hora entre o pouso e a chegada ao saguão de desembarque e o tempo de deslocamento até aeroportos que, em geral, estão distantes dos centros urbanos. Somados esses tempos, o trem pode ser bastante atrativo.
Serviços de trem não são paralisados por questões meteorológicas comuns no Brasil, não sofrem interferência nas vias, oferecendo uma alta confiabilidade de partidas e chegadas nos horários previstos. Não preciso me estender, aqui, sobre a segurança da operação ferroviária quando comparada aos demais modos de transporte.
A França, recentemente, proibiu viagens de avião de curtas distâncias, na sua ação para combater as mudanças climáticas. Passou da hora de sairmos do discurso sobre sustentabilidade e partirmos para ação concreta. Nosso planeta não está mais na beira do abismo. O painel das Nações Unidas para o clima não cansa de alertar que estamos chegando ao ponto sem retorno em termos de aquecimento do planeta. Parecemos surdos, vez que seguimos tímidos nas ações para redução das emissões. E se queremos reduzir emissões no setor de transporte, é essencial acelerarmos os investimentos em ferrovias. Portanto, esse projeto do Trem Intercidades de São Paulo, tem altíssima relevância e urgência.
Mas um dos aspectos mais relevantes de um trem dessa natureza não está exatamente na sua função de transporte de passageiros. Mas é uma consequência da sua eficiência, confiabilidade, rapidez e custos razoáveis. Consiste no imenso potencial que ele tem para ser um indutor de um novo desenvolvimento urbano e metropolitano.
As cidades lindeiras ao projeto deveriam se engajar, junto com o Governo do Estado, para adaptar seus planos diretores a esse novo equipamento e aproveitar a oportunidade para, com um novo desenho urbano, as cidades aumentarem a densidade populacional, estabelecerem novas centralidades econômicas com projetos urbanísticos que conectem residências, serviços e comércio em uma mesma área. Será plenamente factível você morar e trabalhar em cidades distintas. A cidade de Washington desenvolveu um novo bairro a partir de uma nova estação de metrô, o NoMa, com uso misto do solo, criando uma área com residências, serviços e comércios, com demanda equilibrada de entrada e saída de pessoas durante os picos diários.
Essa coordenação urbanística pode, além de incrementar a demanda do trem, promover o desenvolvimento orientado pelo transporte, contribuindo para cidades mais sustentáveis, inclusivas, seguras e igualitárias.
Que a gente não perca a oportunidade oferecida pelo Trem Intercidades, quer seja para a largada da reconstrução das ferrovias de passageiros no Brasil, quer seja para mudar o desenho urbano das nossas cidades. Vamos torcer e trabalhar para dar certo.
Há linhas que poderiam ser utilizadas para transporte de passageiros de longa distância, como SP – Rio, SP – Belo Horizonte, Rio – BH, além de várias pelo interior paulista. Bastaria investir na melhoria dos traçados (retificação? duplicacão?), o que poderia ser feito por nossas construtoras, hoje mesmo
Ainda que concorde na maior parte dos objetivos, discordo que tal expansão venha a se concretizar somente por meio da iniciativa privada, como muitos querem fazer crer quando se trata da retomada de investimentos prioritários para o país como as ferrovias de passageiros. Os estudos de caso apontam que a esmagadora maioria de tais investimentos (quando voltados para transporte de passageiros) ocorre com forte participação pública, seja pelo financiamento, sobretudo por meio de captura da mais valia imobiliária (Japão, EUA, China etc) ou outras formas de mobilização de ativos públicos. A direção e visão devem estar sob o interesse público (representado pelo poder público), este sim (inclusive por meio de suas Agencias Metropolitanas, que em SP foram desmontadas) capaz de promover a racionalização da implantação de sistemas regionais e a busca pelo atendimento das necessidades de cada região sob a ótica do interesse público.