Sérgio Avelleda
é sócio-fundador da Urucuia: Mobilidade Urbana e coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
Já vão ficando na nossa memória os tempos nefastos da pandemia da COVID-19. Vamos, dia a dia, graças à ciência, à medicina séria e às vacinas consolidando o cotidiano normal de nossas vidas, com interações pessoais, reuniões, escritórios, salas de aula etc.
Podemos considerar que voltamos ao que se pode chamar de normal. Mas que normal é esse onde os índices de ocupação dos sistemas de transporte coletivo estão abaixo do período pré- pandemia e os engarrafamentos de veículos estão mais elevados?
Durante a pandemia sinalizávamos que o transporte público vivia a maior crise de todos os tempos, com o desaparecimento da imensa maioria dos usuários, que estavam em casa cumprindo as fundamentais medidas de isolamento sanitário. E que o retorno à vida normal poderia representar uma oportunidade para o transporte público crescer sua participação na matriz de viagens das cidades. Mas para isso, era preciso agir durante a pandemia. Infelizmente, poucas cidades seguiram as diretrizes de redesenhar as ruas e avenidas, ampliando o espaço do transporte público. Na volta à normalidade, o transporte seria mais rápido, mais eficiente e mais confiável. Também se recomendava a implantação de ciclovias e a melhoria das calçadas. Paris, Bogotá e Porto Alegre foram cidades que aproveitaram o vazio das ruas para ocupá-las, durante a pandemia, com prioridade para a mobilidade ativa e o transporte público.
Também durante a pandemia o Boston Consulting Group publicou o resultado de uma pesquisa que mostrava claramente que as pessoas pretendiam trocar o transporte público por carros, tão logo os deslocamentos voltassem a ser rotineiros. Fácil de entender: medo da contaminação e as ruas vazias, durante as medidas de isolamento, davam a ilusão de um trânsito mais fluido para carros. O Brasil era o país, entre aqueles que responderam à pesquisa, que as pessoas mais fortemente mostravam a tendência de deixar o transporte público e ir para o carro.
O resultado está aí: nossos sistemas de trens e metrôs operando com demanda bastante inferior à capacidade de transporte e os congestionamentos de veículos com índices bastantes superiores.
Essa é uma realidade altamente indesejável sob qualquer ponto de vista. A queda da receita está gerando um drama para o financiamento do transporte público. Perda de receita, facilmente leva a medidas de corte de custos, que, por sua vez, reduzem mais a qualidade e a regularidade dos sistemas, levando a mais perda de passageiros. Aumentar o uso do carro implica em mais emissões, mais sinistralidade e um uso irracional das ruas e avenidas. Ninguém, em sã consciência, pode advogar este cenário como ideal para as cidades.
Mas a pergunta que se impõe é: uma vez que a maioria das cidades perdeu a oportunidade de redesenhar as ruas e o transporte público durante a pandemia, o que fazer agora? Há muito que se possa fazer em diversas frentes.
Penso que a primeira delas é, e isso deveria ser um mantra, nunca reduzir a oferta ou a qualidade do transporte. A redução da oferta, se reduz custos, também reduz a confiança do usuário no transporte público. A economia de custos apurada no longo prazo resultará em perder mais receita no longo prazo. Só faz sentido para quem está enxergando sem visão estratégica. O poder público precisa compreender que esta não é a hora de reduzir custos. Mas sim, de manter o nível de serviço, ou até aprimorá-lo.
A outra ação é a priorização das ruas e avenidas em favor dos ônibus, que são alimentadores fundamentais dos sistemas sobre trilhos. Implementar faixas exclusivas de ônibus não custam quase nada de recursos e podem ser executadas em questão de dias. Podem melhorar em até 30% a produtividade de uma linha de ônibus, incrementando o atributo mais importante de um serviço de transporte público: a regularidade e a confiabilidade dos prometidos. Com mais espaços para ônibus e menos para carros, o transporte público tende a ser muito mais atrativo.
Também abrir os dados da localização dos ônibus e trens para que empresas de tecnologia ofertem soluções de gerenciamento de viagem, contribuem muito para aumentar o apelo do transporte público. Em tempos de telefones inteligentes na palma da mão de todo mundo, ninguém mais quer esperar ônibus ou trem. Todos querem ser gerentes das suas vidas e viagens. Manter os dados abertos pode aumentar muito a oferta de soluções de gerenciamento e integração de viagens.
Outro caminho é gerenciar a demanda dos automóveis. Não há espaço para todos os carros nas cidades. O poder público deve atuar para racionalizar o uso das ruas e avenidas. Em São Paulo temos o bem-sucedido rodízio municipal. Ampliar as áreas pagas para estacionamentos, encarecer o preço com tarifas dinâmicas, transferindo recursos para o transporte público e, finalmente, termos a coragem de começarmos a cobrar pelo uso das vias públicas pelos automóveis, tal como já fazemos nas rodovias, são caminhos para desestimular o uso do carro e angariar novos fundos para investimentos e custeio do transporte público.
Os operadores também podem e devem fazer a sua parte. Limpeza, segurança e manutenção são elementos básicos e essenciais. Mas é preciso ir além: dotar as estações de trens e metrôs de espaços que incrementem a experiência do usuário na viagem. Quantos espaços ociosos nas estações poderiam ser áreas de convivência, estudo, trabalho ou até mesmo prestação de serviço. Precisamos ir além do pão de queijo ou da lojinha de celular. Os espaços das estações são muito mais nobres e tem potencial para incrementar, e muito, a experiência do nosso usuário.
É preciso uma força tarefa, conectando operadores e poder público, para juntos, recuperarmos a demanda perdida e iniciarmos um novo ciclo de prosperidade para o transporte público.
Excelente ponto de vista: temos que conquistar o usuário com eficácia oferecendo conforto, segurança, preço, qualidade, não nos lamentando de mais uma oportunidade perdida.