Déficit zero em 2024 prevê R$ 35 bilhões de projetos incertos com ferrovias

Valor Econômico – Quase 80% da receita prevista pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para arrecadar em 2024 com permissões e concessões depende de teses e do andamento de processos conciliatórios ainda em trâmite no Tribunal de Contas da União (TCU), que envolvem devolução de trechos ociosos de ferrovias e repactuação de contratos no setor, cujo sucesso é incerto na avaliação de especialistas. Dos R$ 44,3 bilhões previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviado ao Congresso no fim de agosto, R$ 34,5 bilhões dependem de projetos que ainda precisam de conclusão no órgão de controle externo.

Esse montante é um dos mais altos na ambiciosa meta de zerar o déficit público no próximo ano e, desde quando o Executivo encaminhou o Orçamento no fim de agosto, chamou atenção do mercado e de especialistas em contas públicas. Isso porque essa previsão de arrecadação com as concessões e permissões em 2024 é 380% maior do que o previsto para ingressar nos caixas da União até o fim deste ano, no qual está prevista uma receita de R$ 9,2 bilhões de acordo com o dado mais atualizado.

Documentos obtido pelo Valor via Lei de Acesso à Informação mostram que a previsão inicial era levar ao PLOA uma arrecadação muito inferior, de R$ 6,5 bilhões, com outorgas no próximo ano, que não incluia receitas de novos leilões e contratos. Posteriormente, o processo mostra que a rubrica foi turbinada a partir das receitas dos projetos conduzidos pelo Ministério dos Transportes.

A pasta da infraestrutura não esclareceu à reportagem sobre como foi feito o cálculo referente à expectativa de arrecadar os R$ 34,5 bilhões que constam no Orçamento. Nos bastidores, membros do órgão alegam que os projetos ainda são sigilosos, bem como os respectivos valores envolvidos. Técnicos do governo se reservaram a dizer que, desse montante, cerca de R$ 24,5 bilhões são mais previsíveis para arrecadar em 2024, pois se baseiam em teses já homologadas pelo TCU. O restante dependeria de conciliação entre o poder público e empresas privadas.

“Há dificuldade histórica na devolução desses trechos”
— Marcus Quintella

O andamento processual mostra que, a partir de um ofício enviado pelo Ministério dos Transportes prevendo a arrecadação adicional, o Tesouro Nacional sugeriu que a Secretaria de Orçamento Federal (SOF) consultasse a Junta de Execução Orçamentária (JEO) a respeito da inclusão ou não da expectativa de arrecadação no setor de ferrovias no PLOA. Além dos R$ 34,5 bilhões, o Executivo também incluiu no Orçamento de 2024 uma receita de R$ 3,7 bilhões referente a novos contratos assinados pela Copel, que devem entrar no caixa do Tesouro em janeiro do próximo ano.

A JEO é formada pelos ministérios da Fazenda, Plajenamento, Casa Civil e Gestão. Apesar de acreditar na expectativa de arrecadação com os projetos, técnicos do governo admitem que a consulta ao órgão orçamentário é necessária quando existe algum grau de incerteza sobre essa arrecadação.

Ainda no processo, a SOF questionou o Ministério dos Transportes sobre uma expectativa mensal de arrecadação mensal, em 2024, com os projetos ferroviários. O órgão admitiu que não seria possível estimar o cronograma mensal para o ingresso das referidas receitas de ferrovias “tendo em vista que os respectivos processos ainda não foram concluídos no âmbito do TCU”.

Especialistas em infraestrutura, contas públicas e até mesmo membros do TCU questionam a previsão de arrecadar R$ 34,5 bilhões com repactuação de contratos e trechos ociosos das ferrovias. Eles alegam que não houve sucesso no passado com a devolução de trechos não operacionais e, portanto, não é possível ter certeza se, agora, será possível obter esse montante. Portanto, avaliam que, como a verba é incerta, não deveria constar nas projeções do PLOA.

“Há uma dificuldade histórica na devolução desses trechos”, avaliou Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes. “É muito pouco provável que isso ocorra, inclusive porque esses processos são demorados, contestáveis no âmbito regulatório e no Judiciário”, complementou Claudio Frischtak, especialista em logística.

Hoje, há dois processos conciliatórios no TCU envolvendo o setor de ferrovias. Eles são conduzidos pela recém-criada Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos, que busca soluções consensuais para problemas relevantes em contratos, mitigando futuros litígios. Um envolve alterações de encargos e obrigações previstas no âmbito da Malha Paulista. O outro se refere à devolução de trecho de 104 km não operacional na Malha Sul, entre Presidente Prudente e Presidente Epitácio, em São Paulo. Esse processo, avalia o governo, seria um teste para a futura devolução de ativos que estão abandonados por concessionárias. Segundo o TCU, de 29,9 mil quilômetros de malha ferroviária do país, 7 mil estão sem fluxo e 18,6 mil, subutilizados.

Quintella aponta que é trabalhoso estimar o valor de cada trecho ocioso a ser devolvido para a União. “É uma discussão que precisa sempre passar por estudos de viabilidade econômica-financeira. Do contrário, não justifica.”

Gabriel Leal de Barros, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) e sócio da Ryo Asset, avalia que, pela boa prática contábil, o governo só deveria incluir no Orçamento receitas certas em relação a concessões e permissões, sem qualquer grau de incerteza.

“A boa prática contábil e de governança recomenda que sejam consideradas as receitas de maior probabilidade de materialização e em estágio conclusivo, idealmente já concluídas, líquido e certo. As receitas com concessões, notadamente as que dizem respeito às ferrovias, que estão ancoradas em processo que ainda está em curso no TCU, não reúnem essas condições”, criticou. “Nesse sentido, a crítica à falta de realismo das projeções constante do PLOA 2024 está não apenas mantida, como é reforçada quanto avalia-se linha a linha as projeções.”

O Ministério dos Transportes não se manifestou sobre os cálculos para chegar aos R$ 34,5 bilhões. O Planejamento disse que “a JEO, por meio de seus ministros, decidiu pela incorporação das medidas propostas pela Fazenda”.

Via lei de acesso, a Fazenda informou que o Tesouro “consolida informações enviadas pelos órgãos setoriais”. “Nesse contexto, esses órgãos, em caso de necessidade, é que poderiam potencialmente fornecer eventuais detalhes sobre seus respectivos cálculos de receitas de concessões/permissões.”

Fonte: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/10/04/deficit-zero-em-2024-preve-r-35-bilhoes-de-projetos-incertos-com-ferrovias.ghtml

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